Começar o ano com covid: alguns desafios para a Igreja

Os desafios são tantos que podemos ficar parados à espera que passe a tormenta, abrigados nalguma gruta, olhando o horizonte até que apareça algum navio que nos traga a messiânica vacina.

Tudo concorre em bem para aqueles que amam a Deus” (Rom 8, 28).

Cá estamos no início de um novo ano pastoral e – desta vez – por causa da covid as incertezas são muitas. Nem sabemos bem o que devemos colocar no programa anual. Será possível fazer a festa da Paróquia? Em que moldes? E a habitual peregrinação a Fátima? E a catequese, não seria melhor dá-la online? E o festival da canção jovem, a nossa principal atividade com adolescentes que no ano passado chegou a ter quase 500 jovens?

Os desafios são tantos que podemos ficar parados à espera que passe a tormenta, abrigados nalguma gruta, olhando o horizonte até que apareça algum navio que nos traga a messiânica vacina. Mas parece-me que, à Igreja, nos é pedido precisamente o contrário: que saibamos arregaçar as mangas, tirar partido desta situação e desbravar caminhos novos.

Ao longo de 2000 anos de História a Igreja adaptou-se a tantas e tão variadas situações! Não seria agora um vírus que nos faria encostar na berma. E não se trata só de resistir, mas de tirar proveito pois, como tão bem escreveu S. Paulo: “Tudo concorre em bem para aqueles que amam a Deus”. Se Deus permite que vivamos o que estamos a viver é porque tem graças especiais para nos dar. Temos é de aceitar o desafio de nos expormos a este tempo sem nos refugiarmos em grutas onde trocamos a esperança pela simples espera.

Aqui vai a minha contribuição para uma reflexão acerca dos desafios que se colocam à Igreja em fase de covid, no início deste ano pastoral.

 

1. O desafio de não parar

Assegurar somente os “serviços mínimos” pode ser uma enorme tentação. Missas e funerais. Às vezes já tive a sensação de que a pandemia servia de pretexto para não se trabalhar. Como não é possível fazer o que dantes se fazia do modo em que se fazia, então não fazemos (quase) nada. Cruzar os braços e sentar-se à espera que passe: que belo testemunho da esperança cristã!

Por detrás desta tentação de cruzar os braços está, evidentemente, o desânimo, que é o fermento preferido do diabo.

Às vezes já tive a sensação de que a pandemia servia de pretexto para não se trabalhar. Como não é possível fazer o que dantes se fazia do modo em que se fazia, então não fazemos (quase) nada. Cruzar os braços e sentar-se à espera que passe: que belo testemunho da esperança cristã!

2. O desafio da criatividade

A criatividade não é uma característica dos artistas, é uma nota da esperança cristã. Onde está o Espírito Santo há esperança e onde há esperança há criatividade. Dentro ou fora da Igreja a criatividade é sempre um sinal de vitalidade.

A criatividade é a capacidade de encontrar novas formas para exprimir e concretizar o Essencial. O Papa Francisco tem dito repetidas vezes que “sempre se fez assim” não serve como critério pastoral. Mesmo antes de aparecer a covid-19 escrevia o Papa:

“A pastoral em chave missionária exige o abandono deste cómodo critério pastoral: «FEZ-SE SEMPRE ASSIM.» Convido todos a serem ousados e criativos nesta tarefa de repensar os objetivos, as estruturas, o estilo e os métodos evangelizadores das respetivas comunidades.”

                                                                 (A Alegria do Evangelho, 33)

 

Na Igreja, como em qualquer grande estrutura, um dos perigos é a cristalização e a absolutização das formas. A supremacia das formas sobre os objetivos e sobre o espírito. Por exemplo: para se transmitir a fé aos mais novos criámos aulas de catequese semanais. Com o andar dos tempos foram-se formando manuais e cursos. Tudo isto é óptimo mas se, nalgum momento, tais aulas não forem possíveis, que fazemos? Reinventamos o modo de transmitir a fé aos mais novos ou desistimos desse objetivo até que, um dia, possamos voltar a fazer o que fazíamos do mesmo modo como o fazíamos?

 

3. O desafio dos pequenos números

Algumas formas tradicionais de pastoral estavam baseadas em eventos com um número grande de pessoas. Para nós isto pode ser um problema pois grandes ajuntamentos significam maior probabilidade de contágio.

Mas há quem diga que “small is beautiful” (embora talvez não encha tanto os nossos egos eclesiais…). A impossibilidade da realização de grandes eventos pode ser uma oportunidade para a realização de pequenos eventos com pequenos grupos. Em grupos pequenos pode até por vezes haver um crescimento lento que os grandes eventos não dão.

Pequenos grupos podem também ser espaços fecundos de espiritualidade, de oração, de partilha fraterna da experiência de Deus. Não dão nas vistas, não aparecem nas notícias, mas podem ser espaços de muito crescimento. Gostamos de ver um belo pão sair do forno e ser posto no balcão para ser levado para casa. Mas esquecemo-nos que, para isso, teve de ficar escondidamente a fermentar e depois ainda mais escondidamente a cozer.

Recordamos Jesus na Sua vida pública rodeado de multidões mas grande parte do tempo passou-o com pequenos grupos. E a maior parte da Sua vida foi oculta, a crescer lentamente.

Pequenos grupos podem também ser espaços fecundos de espiritualidade, de oração, de partilha fraterna da experiência de Deus. Não dão nas vistas, não aparecem nas notícias, mas podem ser espaços de muito crescimento.

 

4. O desafio das questões de fundo

No pré-covid, por vezes, nem tínhamos tempo para pensar. Só conseguíamos ter tempo para preparar a atividade que vinha a seguir no calendário e – mal ela acabava – já tínhamos de começar a preparar a próxima. Agora, em muitos casos, sentimos ter recebido um presente muito valioso: algum tempo! O tempo que nos sobra pode proporcionar-nos uma oportunidade de ouro para pensar a fundo no que fazemos e como o fazemos. Esta situação de covid não nos proporciona só mais tempo mas também – graças à suspensão de algumas atividades – mais distância interior. Porque, frequentemente, o nosso grande envolvimento com o que fazemos não nos deixa liberdade sequer para pensarmos se o que fazemos tem sentido, se vale a pena e se não haveria outras formas melhores de o fazer.

Este desafio das reflexões de fundo é, antes de mais, um chamamento a regressarmos e ficarmos mais agarrados ao Essencial. Porque facilmente nos perdemos em pormenores e esquecemos o sentido de fundo das coisas. E as perguntas essenciais acabam por ser poucas: A quem nos envia Deus? O que é evangelizar? Como o fazia Jesus? O que temos para dar? Como nos podemos alimentar?

Apegando-nos mais ao Essencial começamos a ver claramente como absolutizámos algumas formas de fazer pastoral e esta absolutização nos tirou a liberdade interior para descobrirmos formas novas através das quais Deus poderia ser melhor servido nos irmãos.

 

5. O desafio das relações pessoais

O trabalho pastoral não é só feito de celebrações e encontros de grupo; é também feito de relações pessoais um-a-um. Veja-se Jesus e os Seus tantos encontros a sós com uma pessoa (a samaritana, o décimo leproso, Zaqueu, a mulher siro-fenícia, etc).

No nosso caso sabemos que isto das relações pessoais é muito importante mas há sempre tanta coisa a fazer! Não sobra por vezes muito tempo. Nós, padres, frequentemente, nem temos tempo para a orientação espiritual quanto mais para as conversas gratuitas fora do calendário…

Esta fase covídica, que abre mais tempo na agenda e eventualmente mais espaço no coração, pode ser um tempo muito bom para encontros descomprometidos e conversas sem objetivos produtivos. Creio que grandes coisas podem surgir de pequenos encontros generosos: o fortalecer dos laços de comunhão, as ideias novas, a abertura de possibilidades pastorais. E ainda que nada disto acontecesse, aconteceria sempre o aspeto mais importante da nossa fé cristã, a presença de Jesus Cristo ressuscitado! “Onde dois ou três se reunirem em Meu nome, aí estarei Eu no meio deles” (Mt 18, 20).

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Muitas outras reflexões se podem (e devem fazer). Estas são apenas um contributo meu ao correr da pena acerca da vida da Igreja em fase de covid. Parece-me até que estas reflexões se poderão aplicar, com as devidas adaptações, à vida de cada um de nós.

Tiremos partido deste tempo com a Graça de Deus e peçamos-Lhe a Graça de não confundirmos esperança com espera.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.