Boas intenções: para que as tenho?

Para passarmos da intenção à ação importa focalizar. Esquecer as grandezas e lembrar a humildade. Como posso contribuir para um mundo mais justo, hoje?

A aventura dos últimos tempos foi a de tentar perceber porque não me envolvo mais em temas de justiça social se tanto me interpelam. A questão central deixa de ser “porque é que as pessoas (no geral) não se envolvem a ajudar outras que sofrem de injustiças?”, e passa a ser “porque é que as pessoas que se querem envolver neste tipo de causas muitas vezes acabam por não o fazer?”. Por outras palavras: porque é que muitas vezes as nossas boas intenções não passam disso?

Desta reflexão, identifiquei quatro possíveis explicações comportamentais sobre as quais levanto propostas de solução, na esperança de motivar pessoas com boas intenções.

1. Temos dificuldade em processar a diversidade e a complexidade das injustiças e bloqueamos

Através dos jornais, da televisão e das redes sociais, somos diariamente confrontados com a persistência de situações de injustiça que criam cada vez mais vítimas. A extensão e dimensão das necessidades e dos danos causados a nível social, económico e político podem provocar em nós um sentimento esmagador que nos paralisa. Ficamos bloqueados por não sabermos por onde começar ou pela impotência que sentimos face à complexidade das situações.

Para ultrapassar este bloqueio importa focalizar. Reavivar a consciência de que não vamos resolver todas as injustiças, e de que não é necessário escolhermos a causa à qual queremos dedicar a nossa vida. Esquecer as grandezas e lembrar a humildade. Como posso contribuir para um mundo mais justo, hoje? Sabendo que a causa de amanhã poderá ser diferente da de hoje.

extensão e dimensão das necessidades e dos danos causados a nível social, económico e político podem provocar em nós um sentimento esmagador que nos paralisa.

2. Estamos à espera das condições ideais para nos envolvermos e, no entretanto, não avançamos

A intenção de nos envolvermos no combate a situações de injustiça pode não passar da intenção porque, muitas vezes, estamos à espera de reunir as condições ideais. Podemos até já estar focados numa das causas que nos interpelam, mas temos a necessidade de primeiro reorganizar a nossa vida para que possamos “fazer as coisas como deve de ser”. E, enquanto não atingimos esse ideal, continuamos a adiar o nosso contributo.

Como o nome indica, o ideal só existe na imaginação e, por isso, importa valorizar os pequenos passos, partindo do nosso contexto específico. Assim, o desafio que deixo é o de identificar a disponibilidade semanal para além do que são as atuais responsabilidades e compromissos de cada um e, com base nessa informação, definir o que poderá ser o primeiro passo para ajudar na construção de uma sociedade mais justa.

3. Ainda não se instalou em nós o sentido de urgência e, por isso, adiamos o nosso envolvimento

Pode acontecer já termos racionalizado a urgência e até o dever de ajudarmos no combate a situações de injustiça, trabalhando para devolver a dignidade humana às suas vítimas, mas falta o sentir.

Esta situação pode estar relacionada com a banalização das injustiças, mas também com o próprio uso de terminologias genéricas. O uso de termos como “refugiados”, “pessoas em situação de sem-abrigo”, “vítimas de guerra”, “vítimas de atuais formas de escravatura” pode dar incentivos a que vejamos o combate a estas situações como um objetivo de médio-longo prazo. Deixam de ser pessoas que estão a sofrer neste momento e passam a ser “apenas algo que está errado” e que exige o envolvimento da comunidade universal.

Neste caso, a solução é bastante evidente: tornarmo-nos próximos. Para sentirmos compaixão, que é o que cria em nós a dita urgência, temos de nos aproximar. Por sua vez, o processo de nos fazermos próximos começa com a nossa disponibilidade e atenção para com o que se passa à nossa volta e, rapidamente, as injustiças (e os termos técnicos) ganharão cara e dores.

4. Não sabemos como nos podemos envolver e dispersamos

Entrar custa. Não conhecemos o meio, quais as instituições que atuam junto das vítimas da injustiça que nos chamou à ação, que tipo de ajudas podemos dar no combate à situação que identificámos, etc. Foram inúmeras as vezes que me senti interpelada por uma circunstância e iniciei pesquisas para perceber como me poderia envolver, pesquisas essas que não surtiram efeito algum. Para esta dificuldade, ajudou-me relembrar uma expressão de Antoine de Saint-Exupéry que passo a citar: “Se quiseres construir um navio, não comeces por dizer aos operários para juntar madeira ou preparar as ferramentas; não comeces por distribuir tarefas ou por organizar a atividade. Em vez disso, detém-te a acordar neles o desejo do mar distante e sem fim. Quando estiver viva esta sede meter-se-ão ao trabalho para construir o navio”.

Quando purificamos os nossos desejos, dando tempo e espaço para refletirmos sobre as nossas motivações (aquilo que a espiritualidade inaciana chama reta intenção), arranjamos forma de efetivar o nosso envolvimento (por exemplo, pesquisando mais arduamente ou fazendo telefonemas para instituições para oferecer a nossa disponibilidade).

Assim, termino com o que terá de ser o início: alimentar o desejo verdadeiro de lutar por maior justiça social.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.