Bem-Merecer

Temos de querer derrubar os muros e grades que prendem e isolam os mais fracos, dispormo-nos a colocar as mãos na massa para lutar por aquilo em que acreditamos, a verdade do mandamento novo.

Há pouco tempo, pude testemunhar uma cerimónia de atribuição de condecorações no palácio de Belém. Toda a circunstância e o desenrolar do evento foi ao encontro do que seria de esperar de um momento como este, e, apesar de um breve ensaio à porta fechada, um sentimento pairava no ar: expectativa. Qualquer pessoa na sala sabia porque ali estava e o que iria acontecer, mas permanecia uma espécie de imprevisibilidade em relação aos acontecimentos que se seguiriam e às palavras que seriam proferidas. Claro está que nem todos os presentes partilhariam os mesmos sentimentos, mas isto foi o que observei e senti. Durante toda a cerimónia, a viver a alegria de ver alguém que admiro muito ser recompensado pela sua coragem, entrega e sofrimento, por breves momentos distraí-me. Olhava para fora da sala ornamentada com vista para o Tejo e pensava nos acontecimentos da madrugada do dia anterior no bairro do Zambujal, na morte de Odair Moniz e no que ela desencadeou: a revolta, a mágoa. Pensei o quão difícil era conceber que eu estava ali, naquela sala num ambiente solene acompanhado de entusiasmo, e noutro lugar de Lisboa as lágrimas transformavam-se em fogo, porque desta vez as balas foram no estômago, e não nas pernas.

“Bem aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados.” (Mt 5, 6). Desde pequeno que esta é a bem-aventurança que mais me cativa, porque sempre tive uma dificuldade em compreender as injustiças, e principalmente quando ninguém age para as corrigir. Que mundo é este onde impera a expectativa da perseguição e da marginalização, do esquecimento? Acredito fielmente que é cada vez mais cómodo fechar as portas e as janelas, sacudir as pedras do sapato, e prosseguir como se fosse mais um dia. Talvez seja o melhor para todos. Para nos protegermos de quem nos quer mal. Que não haja enganos: se é assim que pensamos, estamos a enfraquecer! A deixar que o templo seja tomado pelos mercadores e comerciantes, que nada mais desejam do que secar-nos de toda a ternura, compreensão e amor que possa restar. Quando Jesus foi questionado pelos chefes dos judeus sobre as suas ações no templo, a resposta foi curta e simples, e, nem assim, cegos pela ganância e pelo ódio conseguiram interpretar o que dizia o filho de Deus. “Em três dias levantá-lo-ei” (Jo 2, 19). É um bater de pé de Jesus. Que não se duvide do poder de Deus, porque Ele não me abandona, e em três dias Ele o provou. Nenhum de nós é o filho de Deus, mas há tanto que podemos aprender e fazer com estas palavras…especialmente no que toca a expectativas, esperança e justiça. Temos de querer derrubar os muros e grades que prendem e isolam os mais fracos, dispormo-nos a colocar as mãos na massa para lutar por aquilo em que acreditamos, a verdade do mandamento novo. Porque há lugares, não muito longe das nossas casas, onde a expectativa é a morte, o fim. A esperança não deu fruto porque a semente não foi plantada. A justiça não se faz, porque não há expectativa de tal coisa, nem esperança de um novo dia.

Acredito fielmente que é cada vez mais cómodo fechar as portas e as janelas, sacudir as pedras do sapato, e prosseguir como se fosse mais um dia. Talvez seja o melhor para todos. Para nos protegermos de quem nos quer mal. Que não haja enganos: se é assim que pensamos, estamos a enfraquecer! A deixar que o templo seja tomado pelos mercadores e comerciantes, que nada mais desejam do que secar-nos de toda a ternura, compreensão e amor que possa restar.

“Bem-Merecer” são as palavras inscritas na condecoração atribuída naquele dia. Muito daquilo que sinto em relação à justiça recebi de quem vi ser reconhecido naquele dia. Foi com esta pessoa que aprendi o valor e peso das palavras ponderadas, da verdade, do toque, da mão e braços estendidos, do serviço desmedido. Precisamos destes valores talhados na mente e no coração, porque quantas pessoas do bairro do Zambujal poderiam receber as palavras “Bem-Merecer” por já terem entregue tudo, até as suas vidas? As vidas dos seus filhos e filhas, netos e netas, irmãos e irmãs. No entanto, existe quem insista na argumentação dos bandidos, dos leprosos com quem não podemos contactar e tocar. São perigosos e estranhos, são estrangeiros. Todos os dias somos testados e encontramos desculpas e motivos para não sermos capazes de ser como Jesus, que nasceu na manjedoura e morreu na cruz. Está na hora de dizer “chega”, e fazermos por cumprir o desígnio de Deus para as nossas vidas: amar sem medida.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.