Ajoelha-te e acreditarás

Ajoelhar-se equivale a renunciar à estatura erguida; significa, portanto, a renúncia a si mesmo, à auto-suficiência, para se entregar a um outro

Ajoelha-te e acreditarás. Por mais seco que possa parecer, é assim que Pascal espicaça os racionalistas a não reduzirem a existência de Deus a uma prova sobre a mesma. A frase é pequena e repete-se sucessivamente sobre si, como se de um mantra se tratasse, desembrulhando-se para oferecer significado. Não se trata do “acreditar para compreender” que nos ensinaram Santo Anselmo e Santo Agostinho. Abre-se um passo anterior à fé, um gesto de carne que ultrapassa a dimensão das palavras. Quase como se o corpo pudesse preceder os movimentos da alma, revelar uma gramática cordial no simples ato de fletir os joelhos, colaborar com a força gravítica e reclinar-se em submissão querida ante a força da graça.

Ajoelha-te e acreditarás. Na história de muitas pessoas do nosso tempo, esta frase poderia descrever a sua aproximação a Deus. Recordemos Etty Hillesum, que com Rilke aprendeu o conceito de espaço interior, a partir do qual deveria dialogar com Deus e “aprender a ajoelhar-se”  diante do Mistério, porque  “é preciso ousar pronunciar o nome de Deus”. Dois anos depois do nascimento de Etty, contava-se o ano de 1916, era assassinado Charles de Foucauld no norte de África. Este, anos antes, ao entrar numa Igreja em França, perguntou a um padre que estava no confessionário como se poderia informar sobre a religião cristã. O padre respondeu, talvez com um tom que hoje não nos soaria bem, “ajoelhe-se e confesse-se”. Nesse momento, aquele que viria a ser fundador da Fraternidade dos pequenos irmãos de Jesus encontrou a presença de Deus, convertendo a Ele o seu coração. Outros casos podiam ser contados, mas estes bastam para perguntar: porquê esta desproporção entre o gesto e a convicção que ele gera? Não quero com isto dizer que são os gestos que geram a fé, mas também seria incerto pensar que a fé nasce sem gestos concretos.

Ajoelha-te e acreditarás. Na história de muitas pessoas do nosso tempo, esta frase poderia descrever a sua aproximação a Deus.

Diz Romano Guardini, em Mundo e Pessoa, que a estatura erguida é o sinal distintivo do homem entre os demais seres vivos deste mundo; ela simboliza, pois, o poder dominador, a capacidade de lutar e rivalizar, que fazem do ser humano um chefe. Ora ajoelhar-se equivale a renunciar à estatura erguida; significa, portanto, a renúncia a si mesmo, à auto-suficiência, ao poder de chefia, para se entregar a um outro, que realmente o mereça por ser mais digno ou mais sábio. Se olhamos para o capítulo 18 do Evangelho de Lucas, encontramos uma situação paradigmática de linguagem corporal. Dirigindo-se a uns que se tinham por justos e desprezavam os demais, Jesus conta uma parábola sobre dois homens que sobem para rezar no Templo. Um deles, o fariseu, reza de pé e dá contas do seu bom cumprimento da Lei. O outro, um publicano, sem se atrever a levantar os olhos ao céu, dizia: Senhor, tem compaixão de mim, porque sou um pecador. O primeiro reza em pé, autojustificado. Quanto ao segundo, o texto não diz que se ajoelha, mas que não se atreve a levantar os olhos ao céu e bate sobre o peito enquanto dirige um pedido a Deus. Ele não é justo e sabe-o. Porém, desceu do Templo justificado, o fariseu não.

Ser justificado significa receber de Deus o dom de viver a partir da relação com Ele. É estar alicerçado e pôr toda a esperança na fonte do próprio ser. Esta justificação, este repouso no dom invisível de Deus, coincide com o cerne da fé cristã. Acreditar, deixar-se justificar pelo Deus de Jesus Cristo, significa depor as armas da autojustificação e, deixando-se assumir, deixar-se salvar. Diz o refrão teológico de Gregório de Nazianzo, referindo-se à humanidade da encarnação do Senhor, “aquilo que não é assumido, também não pode ser salvo”. Do mesmo modo podemos ouvir o seu eco antropológico: aquele que não se deixa assumir, também não se deixa salvar. Este eco é formulado pela positiva por Agostinho de Hipona, ao dizer: “aquele que te criou sem ti, não te pode salvar sem ti”. O gesto é hermenêutica pura, pois deixa transparecer a atitude dos ajoelhados do nosso mundo: deixarem-se salvar. Ajoelhar-se, genufletir-se como mendigo do amor de Deus, é o princípio da justiça, princípio daquela fé que não é ilusão transcendental, mas dom gratuito do Senhor Jesus. E este dom gratuito gera essa tal convicção desproporcionada. Em Etty, o desejo de entregar o seu próprio corpo pela vida dos seus compatriotas judeus. Em Charles de Foucauld, o amor à vida oculta de Jesus, que ele recriou entre os tuaregs do Sahara.

Ser justificado significa receber de Deus o dom de viver a partir da relação com Ele.

Na carta aos Filipenses, o capítulo 2 deixa-nos entrar num belo hino litúrgico em louvor a Cristo. O hino admira o movimento de Deus, em baixar até à condição de escravo, sendo, em virtude da Sua entrega obediente, exaltado pelo Pai com um nome que está acima de todos os nomes. Diante dessa exaltação, continua o hino, todos os joelhos se devem dobrar. Este dobrar do joelho significa, antes de mais, reconhecimento de tanto amor recebido daquele que por mim se entregou. Além disso, ajoelhar-se, como membro do corpo de Cristo, é baixar até à condição de escravo, entregue e obediente à vontade de Deus Pai. Tal como tantas representações da Anunciação pintam Maria, modelo dos crentes, ajoelhada como quem reconhece tanto bem recebido e se entrega em obediência. Esta dupla dimensão da genuflexão, reconhecer e escutar, encontra o seu âmbito de expressão mais pleno na liturgia e na oração pessoal. Aí, onde todos somos atores, onde todos somos movimento capaz de Deus. Talvez seja esse o espaço mais próprio para que, tal como a Jeremias, a fé se reacenda em nós como um fogo que se comprimia nos ossos, ajoelhados.

 

Texto escrito em maio de 2015 

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.