A minha sorte

A pobreza aumentou, as desigualdades denunciaram-se e afundaram-se e o elevador social da educação parou e avariou-se. E ninguém quer saber. Ninguém que possa concertá-lo quer saber. E é assim que começam os conflitos sociais.

Quando me perguntam com curiosidade como vivi o confinamento com seis filhos em casa, tento sempre corresponder às expectativas e, com o ar pesaroso, digo: “cá se passou…”, acompanhado com um ligeiro encolher de ombro tentando exprimir resignação. Como quem diz, sobrevivemos. Mas é mentira.

Estávamos a jantar quando os mais velhos receberam emails das faculdades a informar que no dia seguinte não teriam mais aulas. Na semana seguinte seriam os mais novos. Em poucos dias montámos a logística. As aulas seriam online e no mesmo horário de sempre, era preciso arranjar computadores ou tablets ou qualquer outra engenhoca para cada um. Encomendei mercearias para mais de um mês, assim como carne e peixe, reforcei os produtos de limpeza assim como o sinal do wi-fi e certifiquei-me de que tinha os canais todos.

Estávamos prontos para a guerra. O trabalho abrandou ou parou e havia uma cave para arrumar, roupas para separar, livros para organizar. Vivemos entre a serra e o mar. Não há confinamento possível quando se vive entre uma serra e praias. De fome não iríamos morrer e de iliteracia não se morre. E os cães e o meu único filho passeável (tem seis anos), nunca passearam tanto na vida deles. Havia horas de refeições, comeu-se sopa em todas elas, levantavam-se cedo, estabeleceram-se tarefas para cada um, o exercício era ao ar livre a escalar a serra ou em corridas até à praia e rezámos que se farta em família especados de frente para a televisão e a pôr em pausa cada vez que alguém tinha de ir à casa de banho, congelando o padre no meio da homilia.

Como vivemos o confinamento com seis filhos em casa? Muito bem. Só tenho um filho pequeno que em frente ao computador aprendeu as letras q, c, x, o lh e o ch entre outras coisas de uma complexidade sem grau. Estive ali, ao seu lado, sem paciência, numa disciplina férrea a tentar que ele entendesse porque é que temos uma língua em que existe c com cedilha que se lê como o s e que o q precisa sempre do u para se ler q, como o c quando tem a, o ou u (que se lê cu e ríamo-nos sempre), mas isso é só nos casos do e e do i. Perdi a cabeça quando chegámos ao x que se lê como o ch ou o j ou o g sem u e ainda hoje me questiono como consegui manter a postura e não partir nada quando a criança confundiu pela milésima vez o n com o m. Foi exaustivo e acho que a nossa relação mãe e filho não mais será a mesma, uma vez que teremos sempre a leitura a meter-se entre nós. Um dia ele queixou-se: “Professor, a minha mãe bateu-me porque eu não sabia a letra com mais perninhas”. Desmenti, claro. Foram estes os meus problemas pandémicos.

Foi assim o nosso confinamento. O nosso e o de uma percentagem mínima de famílias que têm a mesma sorte da nossa. A esmagadora maioria viveu mal estes meses e o futuro não é risonho.

Até que um dia o meu filho mais velho nos informa que quer ir para um lar nos confins do país onde os funcionários estão infetados e são pedidos voluntários para os substituir. Claro que não. Há dois meses um pedido destes era interpretado como os chamamentos para a linha da frente na guerra das trincheiras. Mas claro que ele foi. E nós, cheios de orgulho. Mas na dúvida se aquela disponibilidade não era apenas uma forma que ele tinha arranjado para não ficar em casa a arrumar o quarto, a lavar a casa de banho e a ouvir gritos. Não indagámos e ele lá foi. Chegou ileso e melhor.

Foi assim o nosso confinamento. O nosso e o de uma percentagem mínima de famílias que têm a mesma sorte da nossa. A esmagadora maioria viveu mal estes meses e o futuro não é risonho. A maioria das famílias portugueses não vive entre a serra e o mar, nem tem cães para passear na serra, não conseguiu arranjar computadores ou tablets para os filhos todos, nem tem os filhos em escolas que lhes proporcionaram aulas online com horários preenchidos, não têm uma mãe disponível para se sentar com o filho horas a fio a ajudá-lo a aprender a ler, nem conseguiu encher a dispensa e o congelador.

A maioria das famílias portuguesas nem sequer são de funcionários públicos nem de quadros de empresas e viram os seus rendimentos a diminuírem ou a desaparecerem, os negócios a fechar e as falências a bater à porta. Quem tem filhos filhos pequenos teve de organizar turnos para os entreter, uma vez que a escola desapareceu e apareceu umas semanas depois em forma anedótica na televisão. O ensino foi dado conforme o critério de cada professor e os casos tornaram-se dramáticos. Os maus tratos aumentaram e as crianças com dificuldades de aprendizagem são as primeiras vítimas. Quem estava a aprender a ler, desaprendeu, quem estava a ganhar confiança e a evoluir, regrediu, quem estava a integrar-se na escola fechou-se na televisão e os casos de necessidades especiais passaram a casos de necessidades urgentes e trágicas.

A escola é onde as desigualdades podem ser colmatadas, é o espaço privilegiado das relações sociais, interpessoais e do desenvolvimento pessoal em todas as suas dimensões, é onde os mais pobres têm o apoio mínimo de que necessitam, onde os maus tratos são denunciados.

E não exagero nos termos. Seis meses sem escola em idades críticas de crianças que não estão acima da média, trazem consequências gravíssimas a todos os níveis. A escola tem um papel que vai muito além da sua função primordial de ensino: a escola é onde as desigualdades podem ser colmatadas, é o espaço privilegiado das relações sociais, interpessoais e do desenvolvimento pessoal em todas as suas dimensões, é onde os mais pobres têm o apoio mínimo de que necessitam, onde os maus tratos são denunciados e através da qual toda a organização familiar se estabelece. Sem escola tudo isto pára e desmorona.

Já muito se escreveu sobre isto – os textos de Alexandre Homem Cristo, Luís Aguiar-Conraria ou Fernando Alexandre são de leitura obrigatória – mas o autismo de quem decide em relação a este tema é criminoso. Durante este confinamento, e ainda hoje, a maioria das famílias portuguesas vive em exaustão com os filhos sem relacionamento social, a sugarem a atenção dos pais (os quais teletrabalham com bebés ao colo quando têm a sorte de poderem exercer a sua profissão desta forma), sem espaço e com tempo a mais para a neurose da televisão e do digital.

A pobreza aumentou, as desigualdades denunciaram-se e afundaram-se e o elevador social da educação parou e avariou-se. E ninguém quer saber. Ninguém que possa concertá-lo quer saber. As famílias portuguesas não sabem quando e como vão abrir as escolas, como vão recuperar o tempo perdido dos seus filhos ou como vão ser colmatadas as insuficiências de aprendizagem. E é assim que começam os conflitos sociais, quando o fosso da desigualdade aumenta e quando podemos dizer sem qualquer demagogia que os nossos decisores políticos viraram as costas às pessoas, ao povo que neles confiaram, porque os seus filhos não estudam onde estuda quem eles governam, nem sentem as dificuldades de quem perdeu os seus rendimentos porque não comem na e da mesa do orçamento de Estado. “Os animais que estavam lá fora olhavam dos porcos para os homens, dos homens para os porcos e novamente dos porcos para os homens; mas já não era possível dizer quem era quem.” (in, o Triunfo dos Porcos, George Orwell, 1943).

Passados estes meses, tenho vergonha da minha sorte. Por isso, quando me perguntam como passei o confinamento com 6 filhos em casa encolho os ombros e respondo: “lá se passou…”

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.