A esperança e a desesperança na nossa democracia

Não desperdicemos a avassaladora disponibilidade de tantos de nós (são mesmo centenas de milhares). E comecemos por cultivar esse pulsar democrático que, às tantas, não sentimos ou não praticamos.

Quem se interessa pela coisa pública, pelo destino da «cidade», pela qualidade dos nossos protagonistas, no fundo, quem ainda resiste à indiferença e milita em partidos ou movimentos, colabora ou participa em campanhas, ou, simplesmente, ainda vota, vem acumulando – diz-se, qual lugar comum e sem grande contestação – razões para estar preocupado. Se, justa ou injustamente, já vai singrando a cada vez mais evidente dificuldade em atrair os melhores protagonistas, a cada nova jornada eleitoral somos confrontados com taxas de abstenção profundamente desanimadoras e que nos deviam obrigar a parar para pensar (ou repensar) sobre a viabilidade desta democracia em que vivemos. Claro que as generalizações são sempre injustas. Mas o consenso é, no mínimo, perturbador.

Tenho a sensação que neste diagnóstico mora algum comodismo, um certo culto da inevitabilidade, e até aquele paternalismo presunçoso (muito tributário da típica presunção do «nós», os bons, os qualificados, os desprendidos, por oposição a «eles», os sofríveis, sem reputação, dependentes).

Não quero aqui contestar este diagnóstico. E nem sequer terei a pretensão de abalar esse cómodo consenso. Mas arrisco lançar para arena duas ideias. Uma de esperança. Outra de desesperança, sim (mas que é sobretudo um desafio de consciência).
Talvez surpreendentemente, há (ainda) razões que nos deviam animar. E desse ânimo – e das razões desse ânimo – talvez pudessem surgir outras razões mais para inverter aquele tal diagnóstico do desânimo.

Seria insensato fazer loas a um resultado em concreto, a um qualquer candidato ou vencedor. Porque se para uns vitórias houve que geraram esperança, para outros, pelo contrário, essas mesmas vitórias adensaram o desânimo (quando não a revolta). Uma história eleitoral, qualquer que ela seja, por mais que nos tenha surpreendido (ou até impressionado), por mais que nos sirva de contracorrente nessa tendência na deterioração dos protagonistas, por mais inspiradora que pessoalmente nos pareça, não a quero aqui convocar.

Pelo país todo (de norte a sul, do litoral ao interior, passando por todas as ilhas dos Açores e da Madeira) foram apresentadas a votos 12.370 (doze mil trezentas e setenta, caramba!) listas de candidatos, sendo mais de 1.000 (mil) as que brotaram de meros grupos de cidadãos eleitores, com o que isso implicou de recolhas de milhares de assinaturas e de cumprimento de burocracias e condições adicionais.

Eu queria, antes, olhar ao que foi, e o que implicou, a última grande mobilização eleitoral por que passámos – as autárquicas de 26 de Setembro –, para lá das histórias de cada contenda. Às tantas poucos se terão dado conta. Mas eu queria que soubessem.
No meio daquele diagnóstico da nossa desesperança, nós fomos capazes de protagonizar colectivamente 308 (trezentas e oito, gosto de escrever por extenso) disputas à liderança de câmaras municipais, e 3.091 (três mil e noventa e uma!) à liderança de juntas de freguesia. Pelo país todo (de norte a sul, do litoral ao interior, passando por todas as ilhas dos Açores e da Madeira) foram apresentadas a votos 12.370 (doze mil trezentas e setenta, caramba!) listas de candidatos, sendo mais de 1.000 (mil) as que brotaram de meros grupos de cidadãos eleitores, com o que isso implicou de recolhas de milhares de assinaturas e de cumprimento de burocracias e condições adicionais. Nestas doze mil e muitas listas participaram, pois, centenas de milhares de candidatos, o que é o mesmo que dizer que centenas de milhares de muitos de nós, se predispuseram a reunir documentos (certidões de registo criminal, certidões de situação fiscal regularizada, declarações de aceitação) apresentando-os em tribunal para que fossem escrutinados e confirmados. Centenas de milhares de cidadãos, sublinho. A esmagadora dos quais, depois, lançaram-se em campanha por esses territórios que tanto amamos e de que tanto nos orgulhamos.

Há mesmo muita gente (muito boa gente) que se predispõe a troco de nada. Que sabe que não vai receber nem alcançar nada (no sentido material e interesseiro do termo). Que ou não será eleito ou será mera oposição. Que será minoria sem expressão. Que se dá, de facto, ao trabalho, entregando-se gratuitamente em nome dos seus concidadãos. Sim, porque a esmagadora maioria desta gente não se serve, não está para se servir, está mesmo gratuitamente em serviço e em entrega. Porque os resultados – os estimados e os verificados – são implacáveis: a esmagadora maioria daqueles cidadãos perdem democraticamente (e sabem que assim será) as respectivas disputas.

Obviamente que este exército impressionante é razão de esperança. E obviamente que nos devia interpelar, vergando-nos à obrigação de percebermos o que os move, por que se predispõem, por que não se gera, depois, o sobressalto da renovação, da requalificação, da atracção que a democracia reclama.

Mas qualquer pessoa que experimente passar pela tensão que envolve a construção de listas a eleições – acedendo, portanto, às lealdades e deslealdades, afinidades e ambições, amiguimismos e ódios, e por aí fora – dificilmente fica com boa impressão.

Eu arrisco – agora do lado da desesperança – uma pista. Vem-me, aliás, de uma ideia – que não é boa ou reconfortante, mas que me ocupou (mais uma vez) no contexto destas eleições – sobre os problemas e as razões da abstenção.
São centenas de milhares, sim. Mas qualquer pessoa que experimente passar pela tensão que envolve a construção de listas a eleições – acedendo, portanto, às lealdades e deslealdades, afinidades e ambições, amiguimismos e ódios, e por aí fora – dificilmente fica com boa impressão. Qualquer pessoa que experimente o ambiente geral de campanhas partidárias – de facção, de entrincheiramento, de ilusão, de acriticismo, e por aí fora – dificilmente fica com boa impressão. Qualquer pessoa que experimente os sentimentos típicos e dominantes nas hostes dos vencedores e vencidos – de escassa magnanimidade, sobretudo isso – dificilmente fica com boa impressão. E, de um modo geral, há uma espécie de vertigem infantil nos apelos, nas denúncias, nas acusações (em que os filtros e a civilidade quase se desvanecem).

Há imensas razões – e diversas e complexas e insindicáveis até – para os níveis preocupantes de abstenção. Mas suspeito que uma delas é esta do exemplo, que não é suficientemente edificante. E às tantas uma democracia saudável depende, antes do mais, do nível com que se exibem os democratas.

Não desperdicemos a avassaladora disponibilidade de tantos de nós (são mesmo centenas de milhares). E comecemos por cultivar esse pulsar democrático que, às tantas, não sentimos ou não praticamos. E talvez a desesperança se encontre com a esperança.
A bem da nossa democracia.

Fotografia –  Jon Tyson – Unsplash

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.