E agora? Algumas notas sobre as eleições de março nos cinquenta anos de Abril

De uma forma ou de outra, é o safety first que é colocado em causa, produzindo uma insegurança quotidiana que só pode, a bem dizer, produzir ressentimento que se converte em raiva eleitoral.

No ano em que celebramos o cinquentenário do golpe militar que, derrubando a velha ditadura, deu origem a um processo revolucionário que acabaria por conduzir à descolonização e ao regime onde vivemos, os resultados das eleições não deixam de suscitar muitas interpelações, animando o espaço mediático tradicional dos jornais, da rádio e das televisões, bem como as redes sociais. No centro da discussão está, obviamente, o resultado do Chega, com quase um milhão e duzentos mil eleitores a escolher este partido, perfazendo 18,1% dos votos expressos. Ao contrário do que os temas e debates travados ao longo da campanha eleitoral pareciam vaticinar, as eleições confirmaram que o país não é uma “ilha”, sendo que muito do que acontece aqui é influenciado pelo contexto internacional, nomeadamente europeu. Assim, de certo modo contrariando leituras menos previdentes, estas eleições mostraram que o país não é imune às dinâmicas populistas conservadoras que têm alimentado o sucesso eleitoral dos partidos de extrema-direita nas mais diversas geografias.

E agora, perguntarão muitos? Os mais conhecedores da história, constatando o avanço eleitoral e o enraizamento social da extrema-direita, irão lembrar o que a Europa viveu há um século atrás com o fascismo em Itália, em Portugal e um pouco mais tarde na Alemanha, com as consequências bem conhecidas. Será que a história se repete? Em O 18 de Brumário, Marx escreve, citando Hegel, que os factos e personagens de grande relevância na história ocorrem duas vezes, embora o filósofo de Estugarda se tenha esquecido de acrescentar que a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa, restando saber em que medida esta se exprimirá…

Deixando para outro momento a discussão sobre a história como tragédia e como farsa, quais são as causas que explicam o sucesso eleitoral do Chega, quer dizer, as motivações que levaram mais de um milhão de eleitores a votar neste partido? Será possível compreender este fenómeno político-eleitoral e social através de considerações sobretudo morais dos eleitores do Chega, algumas até deselegantes, como fez Miguel Sousa Tavares no Expresso, em 29 de março passado?[1] Será pertinente argumentar em torno do “carinho” a ter por este eleitorado, classificando-o em duas categorias, a dos mal formados e a dos mal informados? Refletindo uma soberba própria do intelectual “bem-pensante”, como diria Sahra Wagenknecht, Sousa Tavares coloca-se na posição de um analista que, escrevendo a partir de uma posição social privilegiada, revela desinteresse pelas condições de vida das classes populares e trabalhadoras, parecendo não entender o que as preocupa e aflige.

Certamente as posições sociais e as motivações de quem votou no Chega são muito diversas. No seu eleitorado teremos pessoas da burguesia industrial e fundiária e outras camadas privilegiadas da sociedade portuguesa, não raro saudosistas do regime derrubado pela Revolução de Abril. Mas estas pessoas, por si só, não farão o pleno do eleitorado do partido. Bem longe disso, o êxito eleitoral é alimentado, como aliás acontece noutras geografias, na Europa e fora dela, pelo descontentamento de parte significativa das classes populares e trabalhadoras que sofrem os efeitos produzidos pelo que Nancy Fraser designa por neoliberalismo progressista,[2] produzindo situações sociais e económicas que lesam o que James C. Scott definiu como safety first.[3]

Face a um cenário global marcado por uma crise social e ambiental avassaladora, como justamente a compreendeu e alertou Francisco na cada vez mais atual Laudato si’, abrindo a possibilidade de não existir futuro para a humanidade, as pessoas comuns, que vivem do seu trabalho, preocupam-se com questões básicas, fundamentais e imediatas. Poderão não ser preocupações muito elevadas para quem tem uma situação económica desafogada, mas são as suas preocupações, as suas urgências impostas por uma ordem económica, social e política que as empurra para uma vida constrangida e dominada pela precariedade. Acentuando a privação material dos mais despossuídos, o seu quotidiano está sempre em risco de ser desestabilizado por uma despesa imprevista, hoje uns sapatos que se rompem, amanhã uma doença que tem de ser tratada ou, pior ainda, uma avaria no automóvel que não podem prescindir por falta de alternativa.

Face a um cenário global marcado por uma crise social e ambiental avassaladora, como justamente a compreendeu e alertou Francisco na cada vez mais atual Laudato si’, abrindo a possibilidade de não existir futuro para a humanidade, as pessoas comuns, que vivem do seu trabalho, preocupam-se com questões básicas, fundamentais e imediatas. Poderão não ser preocupações muito elevadas para quem tem uma situação económica desafogada, mas são as suas preocupações, as suas urgências impostas por uma ordem económica, social e política que as empurra para uma vida constrangida e dominada pela precariedade.

Se fizermos o esforço de nos colocarmos em pensamento no seu lugar, convocando uma sugestão notável de Pierre Bourdieu, de imaginar a sua situação, percebemos que em causa já não está apenas o salário, sempre pequeno para chegar ao fim do mês, pagando o esperado e o inesperado. É também o problema da falta de habitação, tornando impossível a vida de quem tem de viver em casa arrendada. Ou adiando, para data incerta, o projeto dos mais jovens de viver de forma autónoma, adquirindo casa ou, simplesmente, alugando um pequeno apartamento. De uma forma ou de outra, é o safety first que é colocado em causa, produzindo uma insegurança quotidiana que só pode, a bem dizer, produzir ressentimento que se converte em raiva eleitoral.

Tão pouco serve acusá-los de fascistas, racistas, xenófobos, islamófobos ou outro epíteto estigmatizante. Temos de escrutinar as causas que explicam a incapacidade dos governos, ora mais à esquerda, ora mais à direita, de resolver os problemas. A aposta no turismo, seguindo o que outros países do sul da Europa fazem, trazendo dentro de si a economia do biscate (gig economy), acelerou a gentrificação urbana. Ao mesmo tempo que expande o trabalho mal remunerado, precário e intermitente em atividades ligadas à hotelaria, restauração e outras necessárias a este tipo de economia. Turismo significa visitantes, pessoas que têm de dormir em algum sítio. Por isso, há que questionar a transformação de imóveis em estabelecimentos comerciais e hoteleiros, a conversão de habitações em alojamento local, alimentando a crise imobiliária, também impulsionada pelos vistos gold e pelos “exilados fiscais”, estes produzidos pelo estatuto do Não Residente Habitual e, mais recentemente, pelo regime legal dos chamados “nómadas digitais”.

Perante isto, é de improvável utilidade para se conhecer o fenómeno proclamar que não devemos dar “colinho” ou “acarinhar” o eleitorado do Chega. O voto neste partido é reacionário, não raro intolerante, colocando em causa avanços civilizacionais e direitos que encaramos como definitivamente adquiridos. Mas dizê-lo deste modo, não deve toldar o discernimento intelectual necessário para que façamos o debate vivo e democrático, também com esta imensa multidão de mais de um milhão de portugueses, sobre as causas profundas que produzem o mal-estar, a desesperança e a frustração que alimenta um partido que não se revê no Abril que agora celebramos.

 

Referências:

[1] Cf. https://expresso.pt/opiniao/2024-03-28-Acarinha-los–Nao-enfrenta-los-e-derrota-los-c03035da

[2] O argumento está magnificamente explicitado na entrevista que a filósofa feminista norte-americana deu a Shray Mehta, disponível em https://ctxt.es/es/20180725/Politica/20935/Shray-Mehta-Sin-Permiso-Nancy-Fraser-fascismo-populismo-entrevista.htm. Nesta entrevista, Fraser lembra que catalogar os eleitores de Trump como racistas não é comprovado pelos factos. Oito milhões e meio de pessoas que votaram em Obama em 2012 escolheram Trump em 2016. Muitas delas eram da classe trabalhadora, do “cinturão da ferrugem”, severamente prejudicadas pela desindustrialização, pelo que as suas motivações estão longe de ser conduzidas por critérios identitários, nomeadamente vinculados à raça.

[3] Em Weapons of the Weak: Everyday Forms of Peasant Resistance, o antropólogo norte-americano aplica o conceito de safety first às práticas e sobrevivência utilizados por grupos sociais subordinados, como os camponeses, mostrando que a sua ação não ignora a proteção das suas vidas, interesses e meios de subsistência.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.