Repensar Portugal – P. Manuel Antunes, sj 1974

Um texto do P. Manuel Antunes, ilustre jesuíta e pensador, publicado na revista Brotéria em maio de 1974, poucos dias após o 25 de Abril. Uma reflexão de há 50 anos mas que mantém uma notável atualidade no contexto atual. Para ler ou ouvir.

Um texto do P. Manuel Antunes, ilustre jesuíta e pensador, publicado na revista Brotéria em maio de 1974, poucos dias após o 25 de Abril. Uma reflexão de há 50 anos mas que mantém uma notável atualidade no contexto atual. Para ler ou ouvir.

Um artigo publicado no volume 98 nºs 5 e 6 do mês de maio da Revista Brotéria de 1974

Oiça aqui

De um dia para o outro tudo pareceu novo. Era o fim das palavras longamente proibidas, dos gestos apertadamente contrafeitos, de uma certa mentira institucionalizada, do terror invisível mas presente em toda a parte. Era a possibilidade do termo do isolamento internacional, daquele «orgulhosamente sós» que é a contradição mesma do mundo em que vivemos. Era o surpreso despertar de um pesadelo de anos, cada vez mais denso, cada vez mais escuro. Era o emergir da «apagada e vil tristeza» para um mundo outro, o mundo da esperança na sua dimensão histórica tangível. Era o regresso à pátria comum de tantos que dela tinham sido expulsos, porque a amavam de outra maneira, mas dos quais se nos dizia, infatigavelmente, que a odiavam.

A revolução foi a festa. Festa dos cravos de Maio, da confraternização do Povo e das Forças Armadas, do entusiaismo colectivo, de
uma certa irmandade não fingida, de uma vasta disponibilidade à abertura, de uma, por vezes cândida e larga espontaneidade.

E, de repente, o País pôs-se a falar. Nestes últimos quinze dias, Portugal tem sido um país que discute, um país que reivindica o possível e o impossível, um país que quer tomar nas mãos o próprio destino, um país que, embora de forma não raro confusa, se esforça por traçar o seu futuro, um país que busca reencontrar a própria identidade. Como em 1385, em 1640, em 1820, em 1910, em 1926.

Reencontrar o antigo, por vezes mesmo, o mais antigo, para criar algo de novo. É isso mesmo o que define nos seus dois termos opostos ma revolução. A nossa história multissecular de Povo independente é feita de espaços de continuidade e de espaços de ruptura, de períodos de deterioração e de períodos de recuperação, de anos de sonolência e de momentos de crítico despertar, de estados de descrença e de instantes largos de esperança quase tão ampla como o universo e quase tão funda como a do Povo teóforo.

Na realidade — sem chauvinismos, sem messianismos e sem isolacionismos de nenhuma espécie —, na realidade, trata-se da história de um país que tem sido excepção, de um país que tem desafiado o «normal» das leis societárias na sua dimensão internacional, de um país, por isso mesmo, não muito compreendido nem por estranhos nem por si próprio, de um pais, a um tempo, cêntrico e periférico, relativamente ao Mundo atlântico e ao Mundo europeu, de um país paradoxo vivo dos mais estranhos que a memória dos homens conhece.

Na realidade — sem chauvinismos, sem messianismos e sem isolacionismos de nenhuma espécie —, na realidade, trata-se da história de um país que tem sido excepção, de um país que tem desafiado o «normal» das leis societárias na sua dimensão internacional, de um país, por isso mesmo, não muito compreendido nem por estranhos nem por si próprio, de um pais, a um tempo, cêntrico e periférico, relativamente ao Mundo atlântico e ao Mundo europeu, de um país paradoxo vivo dos mais estranhos que a memória dos homens conhece. Excepção a sua própria existência contra a «naturalidade» do sistema geográfico. Excepção a aventura fabulosa dos descobrimentos, quaisquer que tenham sido — e muitas foram — as motivações dessa «loucura colectiva». Excepção a criação por um país tão pequeno de um mundo tão vasto e tão unido como o Brasil. Excepção a sua literatura, a mais significativa, além da grega, de um povo tão reduzido. Excepção a conservação, até hoje, de um império colonial tão largo, tão complexo, tão diversificado: de facto, e historicamente já, o primeiro e o último império colonial do mundo moderno. Excepção a maneira como há dias realizou a sua revolução política. No século XX, o que é frequente, o que é quase de regra é que o exército faça revoluções da direita, golpes de Estado da direita, pronunciamentos da direita, com o séquito normal de violências, de tribunais expeditivos, de contracções da liberdade, de supressão dois direitos cívicos e humanos por vezes os mais elementares. Aqui, as Forças Armadas, que tinham implantado e longamente apoiado o regime deposto, operam uma revolução sem derramamento de sangue, desmantelam todas as organizações de poder e coacção em que esse regime se apoiava, instauram
um dos mais amplos climas de liberdade a que pode aspirar um Estado moderno, amnistiam presos políticos mesmo que os seus «crimes» tenham tido aspectos de delitos comuns, fazem voltar do exílio membros de partidos há longos anos proscritos, oferecem a milhares e milhares de refractários e desertores a possibilidade de integração nas tarefas comuns, inauguram processos e modos no sentido de porem termo às guerras africanas que elas há mais de treze anos aguentam e nas quais se não têm sido vencedoras, também, em rigor, não têm sido vencidas.

Tudo isto é novo. Ao menos, em boa parte, novo, só tendo paralelo no nosso passado histórico na revolução liberal de 1820, prefácio às Cortes constituintes do mesmo ano. Seguir-se-á 1823?

Apesar de tudo, apesar de a nossa essência e existência constituírem excepção, ciclicamente, uma enorme vontade de imitação do alheio se apodera de nós. Em 1820, quisemos imitar a Espanha; em 1834, quisemos imitar a Inglaterra; em 1910, a França jacobina; em 1926, a Itália fascista e, porventura também, a Turquia de Kemal Ataturk.

E hoje? Povo místico mas pouco metafísico; povo lírico mas pouco gregário; povo activo mas pouco organizado, povo empírico mas pouco pragmático, povo de surpresas mas que suporta mal as continuidades, principalmente quando duras, povo tradicional mas extraordinariamente poroso às influências alheias, povo convivente mas facilmente segregável por artes de quem o conduz ou se propõe conduzi-lo, é com um povo assim, é a partir de um povo assim que se torna imperioso iniciar a nova marcha que os acontecimentos de 25 de Abril vieram inaugurar numa das horas mais graves da história de Portugal.

E hoje? Povo místico mas pouco metafísico; povo lírico mas pouco gregário; povo activo mas pouco organizado, povo empírico mas pouco pragmático, povo de surpresas mas que suporta mal as continuidades, principalmente quando duras, povo tradicional mas extraordinariamente poroso às influências alheias, povo convivente mas facilmente segregável por artes de quem o conduz ou se propõe conduzi-lo, é com um povo assim, é a partir de um povo assim que se torna imperioso iniciar a nova marcha que os acontecimentos de 25 de Abril vieram inaugurar numa das horas mais graves da história de Portugal.

A hora lírica está a passar. Começou a suceder-lhe a hora da acção. Importa, é urgente mesmo, que ela seja acompanhada pela hora da reflexão. A história mundial está cheia de revoluções confiscadas porque essa hora falhou, de revoluções «traídas porque o activismo as desorbitou, de revoluções frustradas porque o modelo — importado, não raro — quebrou de encontro à realidade que pretendia afeiçoar à própria imagem e semelhança.

Sim, é imperioso partir do país que temos, do país que somos. Não de outro, situado na Europa ocidental ou oriental; não de outro, situado na Ásia remota ou nas duas Américas; não de outro, situado na África ou na longínqua Oceânia.

Muitos dos modelos — de revolução, de evolução, de estagnação, de coacção — ou estão ultrapassados ou não nos servem. Isto não significa que não possamos receber lições e inspiração de aqui, de além, de acolá. Mas tal, só depois de bem filtrado o produto, de bem passado à fieira da crítica.

É fácil pôr no papel dezenas e dezenas de partidos políticos. É fácil fazer proclamações ideológicas como se elas contivessem a última e definitiva verdade. É fácil apontar programas, inumeráveis e ideais, mas que não mordem no real, como se fosse possível colocar entre parêntesis alguns dos nossos .problemas anais graves: o do Ultramar, o da emigração, o dos múltiplos atrasos que nos afectam nos campos político, social, económico, científico, tecnológico e cultural.

 

Repensar o Estado
A anarquia é o átrio da tirania e a tirania é o átrio da anarquia. Esta lei da dialéctica sócio-política tem-se verificado em Portugal
mo último meio século. À anarquia dos derradeiros anos da I República sucedeu o movimento militar do 28 de Maio que havia de
produzir — devida ou indevidamente — a tirania de quase cinco decénios. Tirania essa que, certamente, teve matizes, temperamentos, momentos de sístole e; diástole mas que, no seu conjunto, tirania foi. É ainda prematuro para a julgar com perspectiva histórica. Vive-se ainda a hora das emoções à qual sucederá, cedo ou tarde, a hora das razões. A libertação de um longo cativeiro e as perspectivas da liberdade concedem-nos já, no entanto; espaço suficiente para uma primeira tomada de pulso ao corpo estatal.

É certo que, durante cerca de cinquenta anos se viveu na hipertrofia do Estado. (Maciça ou tentacularmente, como força que avança impiedosa ou como polvo que estende os seus braços com ventosas, Leviatão dominou a existência dos Portugueses. Através dos seus órgãos de repressão e compressão, de coacção e de informação — designadamente, a Polícia Política, a Censura, a organização piramidal dos corpos intermédios e os meios da comunicação social — grande parte ou mesmo a quase totalidade da vida nacional estava condicionada e era mesmo determinada pela vontade do Príncipe e pela vontade da oligarquia que o rodeava aproveitando-se de uma situação anacrónica que só a poucos, realmente poucos, aproveitava em excesso. Por isso o regime se desmoronou em poucas horas como castelo de cartas. Por isso o regime caiu de podre sem ninguém que o defendesse.
Por isso as massas populares, com aquele instinto certeiro que não raro as habita, deram largas, sem desordens, a prodigiosas manifestações de alegria e alívio, de desejos de paz e de concórdia, na justiça, na liberdade, no conhecimento e reconhecimento mútuos, na vontade de construir um futuro melhor para si e para seus filhos. Não termina em geral assim um golpe de Estado. Menos ainda uma revolução que se propõe modificar pela base as relações entre os homens. Mas não insistamos nem nos antecipemos.

Decerto, o famoso artigo 8 da Constituição de 1933 consignava o essencial dos direitos do homem e do cidadão. Mas, como acontecia com a Constituição estalineana de 1936, que os consignava igualmente, a regulamentação retirava ou limitava de forma muito drástica o exercício desses direitos. Sem ser tão arbitrária como a «regulamentação» estalineana, diga-se em abono da verdade histórica. Se houve mortes e liquidações injustas, se houve campos de concentração, se houve torturas horrorosas, se houve privações dos direitos mais elementares, nunca as proporções desses atropelos, agravos e injustiças assumiram as proporções de hecatombe que elas tiveram ou estão a ter noutras latitudes.

Mas, como dizíamos, a «regulamentação» dos direitos do homem e do cidadão que, em boa parte, os suprimia, era a regra. Regra aplicada sobretudo pela Polícia Política, um verdadeiro Estado dentro do Estado, a expressão mais cruel da sua violência, da sua arbitrariedade, da sua tirania. O Movimento das Forças Armadas e o sentimento popular foram certeiros ao procurarem desmantelar a grande cidadela do terror inviável mas presente um pouco por toda a parte, no país, através de uma espantosa rede de denunciantes e de agentes, de organizações e de infiltrações, despendendo os dinheiros públicos em tarefas de morte ou de desgaste quando aquilo que estava e está em causa é a vida dos Portugueses, de todos os Portugueses, que não apenas
a de alguns — poucos — privilegiados. A Inquisição, de triste memória na história do País, teve neste nosso século XX a sua encarnação mais tenebrosa, mais estúpida, mais destruidora e mais obscurantista. É preciso que ela não volte sob qualquer forma e sob qualquer sinal que seja. Organização própria de uma sociedade fechada, a Inquisição, em todos os seus avatares, reais e nominais, deve desaparecer de um Estado verdadeiramente ético e legal, de um Estado fundado sobre o consenso e o pacto, de um Estado que defina, à luz do dia, as regras do jogo político e as faça aplicar pelas instâncias normais da sua defesa.

Foi desmantelada a tirania em todas os seus órgãos centrais, embora ainda não, talvez, em todas as malhais do seu imenso reticulado. Existe agora o perigo contrário, o perigo da anarquia. Também, a anarquia é má conselheira. Quando ela realmente se instala, pelo menos no domínio dos factos, há todos os riscos de injustiças flagrantes, de revindictas pessoais, de satisfação de ambições recalcadas, de pretensões delirantes, de liquidações sumárias, de confusões fatais, de julgamentos sem regras e de regras sem sentido. E tudo a coberto da «justiça revolucionária», que é certamente de atender, mas que, se não seguir as normas precisas dos direitos do Homem, pode facilmente atingir o momento em que os seus autores terminam por ser as suas próprias vítimas. Foi o que aconteceu na Revolução Francesa. Foi o que aconteceu na Revolução Soviética. Foi o que aconteceu em tantas outras revoluções menos faladas.

Até agora, a Revolução de 25 de Abril tem primado pela moderação e pela cordura. Mas o processo revolucionário está em curso e
deve continuar. Importa no entanto velar por que ele não degenere. As Forças Armadas que, até agora, têm dado provas de tanta coragem e lucidez continuarão vigilantes para que na «limpeza» a que seja necessário proceder, a todos os nívea, se não introduzam os oportunistas que passam por cima de todos os escrúpulos morais; os facciosos obcecados que não vêem sequer as regras do jogo, os simplificadores para quem tudo está resolvido só pelo facto de vir consignado num papel ou resumido num slogan, os que, mártires de verdade, num primeiro tempo, de uma autêntica causa partidária, apresentam depois, num segundo tampo, contas astronómicas como se tivessem sido eles os únicos em campo nos tempos difíceis.

Dizia Hegel que os homens aprendem em geral muita história mas que aprendem pouco da história. Se pertencemos ao número dos primeiros, importa que não sejamos do número dos segundos. Sobretudo, neste momento.

Portugal é um velho país com cerca de oito séculos de Estado autónomo. Estado que, ao longo dos tampos, tem conservado certas estruturas de base mas que tem conhecido também roturas e transformações profundas: monarquia agrária, monarquia agrário – mercantilista, monarquia absolutista, monarquia liberal, república liberal-democrática, república ditatorial e oligárquica (vulgo : Estado Novo).

Portugal é um país que pode analisar a experiência alheia, passada e presente, de dezenas e dezenas de Estados: antigos, novos e
novíssimos, procurando conservar uma identidade própria através das modificações, necessárias ou procurando conquistar uma identidade que ainda não possuem.

É desse confronto consigo mesmo e com os outros que o país deve encontrar para a sua própria existência política as fórmulas que melhor lhe convenham. As Forças Armadas, fazendo suas as aspirações da Nação, criaram as condições para podermos discutir livremente e livremente podermos escolher as estruturas fundamentais do novo Estado. Temos, para tanto, um ano à nossa frente. Um ano é muito e é pouco. É muito em termos absolutos, isto é, prescindindo dos outros problemas graves com que nos defrontamos entre os quais avulta o do Ultramar. É pouco, tendo em conta esses problemas e o nosso tão escasso exercício da vida verdadeiramente social e cívica.

Porém, muito ou pouco, é preciso aproveitar esse tempo para repensar e refazer o Estado. Nas nossas tarefas de Povo — tão urgentes como ingentes — essa tem a prioridade, juntamente com a do começo de resolução da questão colonial. Mas uma está ligada à outra em íntima conexão.

Nesse repensar e nesse refazer ou nesse repensar para refazer, é necessário partir da base de que o 25 de Abril não foi um motim
mas foi uma revolução, não foi uma mera revolta ou pronunciamento de capitães mas foi um verdadeiro «virar de página», não foi um movimento de arranjo do existente mas foi o fim de um Estado e o começo de outro que se quer diferente.

Que Estado será esse? A pergunta é de importância capital. Porque é o Estado que defende a nação e a sociedade, as representa no exterior, lhes dá ou lhes condiciona esta ou aquela forma, este ou aquele modelo.

Que Estado será esse? A pergunta é de importância capital. Porque é o Estado que defende a nação e a sociedade, as representa no exterior, lhes dá ou lhes condiciona esta ou aquela forma, este ou aquele modelo. Porque é o Estado que, em última instância articula ou pode articular os disiecta membra da nação e dá sociedade, os equilibra ou reequilibra, os desenvolve ou os comprime, os confisca em próprio proveito ou lhes deixa vida autónoma, os desburocratiza, descentraliza e desestatiza ou, pelo contrário, os ordena em máquina de que ele é o motor, o regulador e o contentor.

Para já, uma grande linha de clivagem se ergue diante de nós: a que separa o Estado monopolista do Estado pluralista.

É o primeiro radicalmente centralizador, burocrático, juridicista e, tendencialmente pelo menos, totalitário. Desse Estado tivemos uma amostra, bem clara e bem dura no regime que no dia 25 de Abril se desmoronou sem que ninguém o defendesse. Nem, a bem dizer, os seus próprios partidários.

É o segundo radicalmente descentralizador, tomando a nação e a sociedade tais como elas são com os seus corpos intermédios verdadeiramente vivos, os seus estratos sociais organizando-se da maneira que mais lhes convier e deixando ao livre jogo do mercado a aplicação da lei da oferta e da procura, nos mais diversos níveis.

Entre estes dois extremos situa-se um amplo leque em que várias combinações são possíveis. É nas zonas temperadas que as melhores e as mais variadas colheitas se tornam viáveis. É nas zonas temperadas que o homem pode construir uma existência mais de acordo com a sua natureza de ser inteligente e livre. É nas zonas temperadas — sem excessos de calor e sem excessos de frio, especifique-se — que as civilizações históricas têm encontrado o meio mais favorável ao próprio desenvolvimento harmónico. É nas zonas temperadas que os milénios têm erguido os seus «séculos de ouro». É nas zonas temperadas que a lei da degradação da energia social adquire ritmo mais lento e se torna, de forma endógena, mais facilmente recuperável e mais integralmente convertível às tarefas úteis do bem comum e às realizações e aspirações das pessoas individuais. É nas zonas temperadas que
«cada coisa a seu tempo tem seu tempo, permitindo as evoluções necessárias e renovadoras, evitando assim os rápidos, os precipícios e as ambiguidades das revoluções a quente onde muito se pode ganhar, sem dúvida, mas onde muito se pode perder também. É nas zonas temperadas que se tornam impensáveis — ou menos pensáveis — as injustiças globais, a inteira sobreposição ao Povo, a trituração dos mais fracos e o desprezo cínico pelos adversários. É nas zonas temperadas que as ideologias quimicamente puras — mas em geral tão cruéis ! — têm menos ar para respirar porque a política como conjunto de ideias, de acções e de instituições é constante criação, e constante relativização de teorias, de estruturas e de grupos que pretendem — ou pretendam — gerir e orientar a Res Publica e o seu Bem comum.

É nas zonas temperadas que as melhores e as mais variadas colheitas se tornam viáveis. É nas zonas temperadas que o homem pode construir uma existência mais de acordo com a sua natureza de ser inteligente e livre. É nas zonas temperadas — sem excessos de calor e sem excessos de frio, especifique-se — que as civilizações históricas têm encontrado o meio mais favorável ao próprio desenvolvimento harmónico. É nas zonas temperadas que os milénios têm erguido os seus «séculos de ouro».

Estamos no momento em que o País se deve pôr em causa para melhor se poder definir. Em todos os níveis mas, sobretudo, ao nível político. Toma-se imperioso saber se Portugal quer viver numa dessas zonas temperadas ou nos pólos. Torna-se imperioso saber se Portugal quer adoptar um esquema totalitário de organização estatal ou se, pelo contrário, prefere um regime em que os seguintes três princípios fundamentais funcionem como norma: o princípio da separação de poderes — judicial, legislativo e executivo — sob o primado de honra e isenção para o poder judicial; o princípio ideológico-afectivo da liberdade, da igualdade e da fraternidade, constantemente em instância de revisão crítica nas suas aplicações concretas e não reduzido a slogan vazio ou a mero discurso retórico sem conteúdo, embora feito com todas as regras da arte; o princípio operatório da dinâmica social com
os seus espaços móveis para a realização das massas, das pessoas e das élites. Das massas, para a sua elevação; das pessoas, para a sua dignificação; das élites, para que a sua criatividade, a sua exemplaridade e a sua capacidade de serviço lhes confiram o verdadeiro nome de élites.

Atenção, porém. Se, geograficamente, vivemos em zona temperada, politicamente, a nossa história conhece períodos de clima polar. O quase meio século que — esperamo-lo — se encerrou a 25 de Abril foi um desses períodos. Não estão em causa todas as pessoas que tiveram responsabilidades de comando durante ele — nem lá perto — como o podem fazer crer certos prosélitos, fervorosos — tanto mais fervorosos quanto mais recentes, não raro — estão em causa, principalmente, as estruturas de um regime anacrónico que permitia a gentes de vários bordos e rebordos aproveitar os mitos correntes no mercado para fazerem o máximo de fortuna possível. Fortuna de ordem muito vária.

E o clima polar pode fazer o seu regresso. O do Norte ou o do Sul. Em qualquer hipótese, mais duro que o anterior. Certos exemplos da nossa história e certos exemplos alheios dos nossos dias — designadamente os do Chile e da Checoslováquia — encontram-se ainda demasiado vivos na memória dos homens para poderem ser esquecidos. Toda a lucidez toda a vigilância e toda a prudência dos Portugueses, sobretudo dos mais responsáveis, nunca serão demais nesta hora grave em que toda a união em torno dos princípios fundamentais da justiça, da equidade e da humanidade será pouca para a autêntica sobrevivência do País. Um País gelado a Norte ou esbraseado a Sul seria a sua própria destruição como organismo vivo que tem porfiado em ser ao longo dos séculos que já não estão longe do milénio.

É nas zonas temperadas que as ideologias quimicamente puras — mas em geral tão cruéis ! — têm menos ar para respirar porque a política como conjunto de ideias, de acções e de instituições é constante criação, e constante relativização de teorias, de estruturas e de grupos que pretendem — ou pretendam — gerir e orientar a Res Publica e o seu Bem comum.

No tempo que decorrerá até às próximas eleições para a Assembleia Constituinte, existirão entre nós quatro instâncias dos poderes do Estado: as Forças Armadas com a sua emanação suprema, a Junta da Salvação Nacional; o Conselho de Estado, constituído, na sua maioria de dois terços, por elementos militares; o Governo Provisório em que se encontram em participação as mais significativas representações dos Partidos políticos em formação juntamente com personalidades de independentes e de técnicos; os Tribunais Judiciais normais.

Não é fácil prever, neste moimento, qual será a articulação concreta dessas quatro instâncias. Importa aqui, no entanto, exprimir a opinião de que a sua existência parece, dada a conjuntura, a melhor e exprimir também o duplo desejo de que a sua existência subsista sem ser ultrapassada por movimentos inconsiderados de precipitação e de que a sua conjugação se traduza nos factos dê forma tal que a humanidade, a serenidade e a equidade de que os homens do 25 de Abril tem dado demonstrações tão largas continuem a funcionar como a regra viva.

A democracia é preciso merecê-la. Não pode constituir dádiva generosa de um dia trazida nas espingardas não disparadas e nos cravos não manchados de sangue do Movimento das Forças Armadas. A democracia é necessária traduzi-la, pelo esforço de todos — mas sobretudo daqueles a quem assiste maior responsabilidade política, social, económica e cultural — a democracia é necessário traduzi-la nos factos e nas instituições que objectivem e encarnem a verdade, a justiça, a fraternidade e a liberdade de uma comunidade verdadeiramente humana.

A democracia é preciso merecê-la. Não pode constituir dádiva generosa de um dia trazida nas espingardas não disparadas e nos cravos não manchados de sangue do Movimento das Forças Armadas. A democracia é necessária traduzi-la, pelo esforço de todos — mas sobretudo daqueles a quem assiste maior responsabilidade política, social, económica e cultural — a democracia é necessário traduzi-la nos factos e nas instituições que objectivem e encarnem a verdade, a justiça, a fraternidade e a liberdade de uma comunidade verdadeiramente humana.

O novo Estado que cada um de nós vai pensar para depois o conseguir escolher, em consciência, através do voto próprio, importa
que seja o Estado de todos que não apenas o Estado de alguns. O Estado de todos só o será quando a ditadura, qualquer que seja o seu rótulo, for proscrita da realidade institucional; quando os privilégios e os abusos de alguns não forem a regra corrente; quando, a pretexto de se suprimirem classes e hierarquias, não se criarem injustiças maiores e incompetências mais flagrantes; quando o direito se basear, não na mera positividade dos órgãos do poder mas na dignidade da pessoa humana, qualquer que esta seja; quando o movimento dialéctico do senhor e do escravo deixar de ser «o pai de todas as coisas e de todas as coisas rei» para ceder o lugar «à verdade como fundamento, à justiça com regra, ao amor como motor e à liberdade como clima».

10 – 15 de Maio de 1974.

Versão áudio pela voz do P. Duarte Rosado, sj

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.