Dualismos eclesiásticos

O problema destas contraposições dualistas ou binárias é, antes de tudo, o facto de reduzirem simplisticamente a realidade, que é bem mais complexa do que aquilo que essa redução permite compreender e mesmo viver.

Devido a uma tendência frequente entre os humanos, costumamos reduzir a complexidade das nossas relações a uma polarização binária, segundo a qual dois elementos se contrapõem, em oposição, mantendo essa contraposição em conflito aberto ou dissolvendo-a pela sujeição de um dos polos ao outro, numa unidade que, em rigor, anula as diferenças em jogo, através do domínio de uma delas.

Também certa configuração da estrutura eclesial, ao longo dos séculos, foi cedendo a esta tendência, articulando-se em contraposições binárias de vária ordem: crente / não crente; cristão / não cristão; divino / humano; igreja / mundo; espiritual / material; interior / exterior; sagrado / profano; sacerdote / leigo; hierarquia / povo; homem / mulher; santo / pecador. A nossa linguagem eclesiástica, com o respetivo imaginário mais ou menos popular e clerical, está repleta destas contraposições.

O problema destas contraposições dualistas ou binárias é, antes de tudo, o facto de reduzirem simplisticamente a realidade, que é bem mais complexa do que aquilo que essa redução permite compreender e mesmo viver. De facto, entre o estado puro de cada um dos polos extremos existe uma infinitude de configurações híbridas que não se identificam, nem com um nem com o outro; para além disso, as relações entre esses dois extremos artificiais são de tal modo complexas e variadas, que não se pode falar, em praticamente nenhuma situação, de polos binários isolados e bem identificados – quem é completamente crente e quem é completamente não-crente? E a relação quotidiana entre crente e não-crente será simplesmente de oposição binária?

Significa isso que não há diferenças e que, em última instância, tudo é igual a tudo? A questão é, de facto, complexa, pois a tendência é para sucumbir, ou a um monismo de base, em que se anulam as diferenças num igualitarismo que impossibilita toda a relação, na complexidade das diferenças; ou então, a uma diferenciação que contrapõe os diferentes de forma binária e tendencialmente hierárquica, com exclusões mútuas e com determinação fixa de propriedades e de funções.

A contestar estas leituras extremas – a monista e a dualista – temos vários argumentos. O primeiro baseia-se na própria realidade. Esta, como se torna claro em cada momento da existência quotidiana, é bem mais complexa do que as leituras reducionistas que dela fazemos. E essa complexidade atravessa todos os níveis da realidade vivida. Só uma construção idealista, com base em princípios estabelecidos a priori, é que nos levará, tantas vezes, à redução da realidade a esquemas simples, como são precisamente os esquemas binários.

Só uma construção idealista, com base em princípios estabelecidos a priori, é que nos levará, tantas vezes, à redução da realidade a esquemas simples, como são precisamente os esquemas binários.

Do ponto de vista eclesial, podemos evocar, ainda, o argumento do Evangelho e das respetivas leituras neotestamentárias, sobretudo a de S. Paulo. Na história de Jesus, são inúmeros os exemplos de confronto e recusa dos dualismos que separavam e excluíam. Paulo chega mesmo a uma formulação lapidar, na superação de algumas das mais significativas contraposições do tempo: “Não há judeu nem grego, não há servo nem homem livre, não há homem nem mulher, pois todos vós sois um só em Cristo Jesus” (Gl 3,28)). Não que Paulo queira negar todo e qualquer tipo de diferença – que serão as diferenças da constituição quotidiana do humano, e até as diferenças entre o humano e o não-humano, na altura menos sensíveis. Mas essas (eventualmente legítimas) diferenças não constituem base de hierarquização, muito menos de contraposição conflituosa ou excludente. Elas são relativizadas através da sua relação fundamental com Cristo, que não corresponde a nenhum dos polos, mas constitui o terceiro elemento, a superar relações dualistas. E isso permite uma articulação relacional específica dessas diferenças, de que a comunidade eclesial pretendia ser o exemplo interpessoal e social concreto. Mas esse exemplo sucumbiu frequentemente à repetição de dualismos antigos (e alguns novos). Por isso, o desafio de Paulo continua vivo.

A confirmar esta perspetiva poderíamos acrescentar um argumento tipicamente teológico: o fato de confessarmos a fé em Deus trino – nem simplesmente uno, nem de modo nenhum binário. A modalidade simplesmente monista foi recusada, na condenação do modalismo; e a modalidade hierárquica foi recusada, ao não ser aceite como correta a leitura subordinacionista. Não se trata, num caso como no outro, de simples especulações abstratas, muito menos de puras guerras de ideias ou de poder. Trata-se da busca de um paradigma que supera as reduções da realidade à univocidade absoluta (sem diferenças) ou à equivocidade dualista, que contrapõe dois elementos opostos. Esse é precisamente o paradigma da complexidade ternária ou trinitária, base de toda a abertura à infinda pluralidade da realidade.

No caminho sinodal que a Igreja católica atualmente percorre, colocam-se sobretudo em questão dualismos que separam “ontologicamente” leigos e clérigos, mulheres e homens – com certas estranhas equivalências entre um e outro. Mas não deveria significar a referência a um terceiro elemento – Deus, em Cristo, por ação do Espírito – precisamente a relativização dessas distinções binárias? Não que se anulem completamente as diferenças; mas essas mesmas diferenças são potenciadas relacionalmente, precisamente na medida em que se relativizam, umas em relação às outras, e todas em relação a Cristo. Isso poderá implicar um processo de dessacralização de certas configurações, no interior da comunidade eclesial – o que significaria uma espécie de secularização sadia, que contesta toda as configurações idolátricas nas relações interpessoais e institucionais.

No caminho sinodal que a Igreja católica atualmente percorre, colocam-se sobretudo em questão dualismos que separam “ontologicamente” leigos e clérigos, mulheres e homens – com certas estranhas equivalências entre um e outro. Mas não deveria significar a referência a um terceiro elemento – Deus, em Cristo, por ação do Espírito – precisamente a relativização dessas distinções binárias?

Também certa “ontologização” do feminino e do masculino (seja sob que forma for, como em certas aplicações da distinção entre princípio Petrino e princípio Mariano), continua a alimentar uma compreensão dualista da comunidade eclesial. Mas a vida comunitária é bem mais complexa, incluindo a configuração concreta dos seus ministérios. Estes são serviços à missão comum de toda a comunidade eclesial que é, por sua vez, um serviço à casa comum de toda a humanidade, ou mesmo de todo o planeta, para além dos humanos. Nesse sentido, estamos perante a exigência de uma desconstrução de todos os dualismos problemáticos, no caminho de uma Igreja ministerial plural, com desafios permanentes, que exigem criatividade também permanente. O Espírito – símbolo real e eficaz dessa pluralidade e dessa criatividade – ajudará a comunidade eclesial a descobrir caminhos que rompam com esquemas demasiado binários, os quais acabam por hierarquizar a Igreja, com evocação de uma falsa sacralização, a qual acabará por conduzir a um exercício de poder e domínio – e até de abuso – que nada tem a ver com o Evangelho. Assim saibamos escutar o Espírito, que fala nos sinais dos nossos tempos.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.