Elevador social ou Titanic cultural?

Cinquenta anos depois do 25 de abril, a escola não pode ser “elevador” para alguns e “Titanic” para outros. A missão da escola não é promover individualmente o cidadão, mas tornar possível um futuro melhor para todos os cidadãos.

No início deste tão desejado terceiro e último período de um longo ano letivo, entre as justas ânsias dos professores do ensino estatal, as polémicas em torno às provas em formato digital e as grandes expectativas que pairam sobre o novo Ministro da Educação e seus Secretários de Estado, gostava de voltar às raízes da sempre delicada arte de educar, contemplando os versos finais do poema “Horizonte”, da Mensagem de Fernando Pessoa:

 

O sonho é ver as formas invisíveis
Da distância imprecisa, e, com sensíveis
Movimentos da esp’rança e da vontade,
Buscar na linha do horizonte
A árvore, a praia, a flor, a ave, a fonte –
Os beijos merecidos da Verdade.

 

Nos últimos meses, nos encontrões de uma intensa campanha eleitoral, entre promessas, debates e arruadas, vimos ressurgir no espaço público a esquecida expressão do “elevador social” aplicada à escola pública. Reconheço neste esforço o desejo de recuperar um discurso sobre educação que se recentre na razão última de existir de todas as escolas (públicas e privadas): a educação integral dos alunos. Todavia, a reanimação política deste velho jargão leva-nos também à questão sobre que escola desejamos construir como país democrático: uma escola que seja “elevador social” que sobe ou uma escola que seja “escada cultural” que desce? Como desejamos formar os cidadãos do futuro: exclusivamente preocupados pelos resultados, pela produtividade e pelos bens económicos; ou conscientes dos processos humanos, abertos ao diálogo com a diferença e construtores do bem comum?

Ainda que não seja claustrofóbico, tendo a preferir as escadas aos elevadores. Não é que um elevador não seja um aparelho útil, sobretudo, em edifícios altos e de acessos penosos, mas, prefiro os degraus, tendendo também a evitar as escadas rolantes. Se, por um lado, na arquitetura da escola – a do currículo, dos métodos pedagógicos e didáticos, da avaliação –, para além de todos os benefícios, identifico uma certa tendência em vincular a expressão “elevador social” a um certo facilitismo, capitalismo e utilitarismo; por outro, para além de todos os perigos, identifico a expressão “escada cultural” com o oposto, ou seja, a valorização dos processos, de uma atitude cívica de serviço e de diálogo. Por vezes, movidos por comparações tendenciosas e inconscientes, usamos a expressão “elevador social” pressupondo a existência de uma determinada elite social, como se a sabedoria se comprasse ou como se o conhecimento fosse um poder utilitário que legítima a subjugação dos outros a uma falsa superioridade cultural. Caricaturando, às vezes, em Portugal, parece que no sul somos todos “doutores” e no norte, somos todos “engenheiros”.

Definir a escola como um “elevador”, um movimento ascendente, pressupõe que o sucesso se constrói trepando, na busca obcecada do bem próprio e pelo mérito egocêntrico das conquistas pessoais. Pelo contrário, definir a escola como uma “escada”, um movimento descendente, pressupõe que a sabedoria se encontra aprofundando as aprendizagens, alicerçando raízes no terreno fértil da humildade e do serviço, dialogando com a complexidade da diferença.

Definir a escola como um “elevador”, um movimento ascendente, pressupõe que o sucesso se constrói trepando, na busca obcecada do bem próprio e pelo mérito egocêntrico das conquistas pessoais. Pelo contrário, definir a escola como uma “escada”, um movimento descendente, pressupõe que a sabedoria se encontra aprofundando as aprendizagens, alicerçando raízes no terreno fértil da humildade e do serviço, dialogando com a complexidade da diferença. Uma escola que ajuda os seus alunos a descer e a mergulhar na profundidade da cultura humana, não dissocia o conhecimento da busca do bem comum, nem o exercício da liberdade da responsabilidade ética e moral; não centra a sua ação nos resultados, mas propõe processos; não procura subjugar ou anular a diferença, mas respeita e dialoga com todos. Mais do que um jogo de palavras, o que está em causa é uma forma de vida e uma determinada compreensão comunitária do exercício responsável da cidadania. Os complexos desafios que enfrentamos a nível mundial exigem a construção de uma fraternidade solidária onde ninguém fique de fora, por isso, a escola não pode ser “elevador” para alguns e “Titanic” para outros. A missão da escola não é promover individualmente o cidadão, mas tornar possível um futuro melhor para todos os cidadãos, sem esquecer os mais frágeis, construindo um país mais culto, mais livre e mais solidário para todos.

Mudar a perspetiva sobre a escola implica necessariamente metamorfosear a forma como olhamos para os seus agentes. Ao definirmos a escola como uma “escada cultural” onde os alunos-árvores aprendem a descer, alicerçando as suas raízes na sabedoria, reconhecemos nos educadores-jardineiros a missão de acompanhar processos e de cuidar minuciosamente do jardim, centrados nos frutos futuros e não nos resultados imediatos. Os professores já não podem ser apenas vistos como assalariados do Estado ou da Entidade Titular, porque são chamados a exercer a nobre missão de humanizar todos os processos de crescimento, ajudando cada aluno a aprender através do erro. Dissociar as letras das virtudes é esvaziar o social do cultural e vice-versa: não há cultura sem justiça, nem justiça sem liberdade.

Cinquenta anos passados da revolução de abril, é justo fazer uma avaliação muito positiva do sistema educativo português, apesar de tudo o que possa ser melhorado. Todavia, a questão permanece: será que o que precisamos é de escolas “elevadores sociais” que fomentem a competição ou de escolas “escadas culturais” que sejam espaços de sabedoria?

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.