A democracia que se cumpriu

A democracia, de facto, não é fácil de praticar. Mas convém cultivá-la nos seus traços essenciais, sob pena de minarmos a casa comum e de não nos darmos (nem merecermos) ao respeito.

Sou, assumidamente, muito sensível ao modo como cada um, nas suas circunstâncias, reage aos resultados eleitorais. Tendo a exigir mais aos vencedores que aos vencidos, porque aos segundos é sempre mais difícil reprimir os «maus» instintos. Mas nem por isso deixa de impender sobre ambos essa convocatória à elevação que, no preciso momento da revelação dos resultados, tende a emergir mais transparentemente.

É nas palavras dos vencedores e dos vencidos que percebemos melhor a adesão ao consenso das regras, ao respeito pelos adversários, à preocupação com o outro que nos olha e que merece consideração. No fundo – numa palavra – magnanimidade. E que, tanto no momento de celebrar como no de reconhecer o insucesso, se exige a um verdadeiro democrata. Por estes dias é-nos exibido, um pouco por todo o espaço público, o estado em que se encontram os nossos «democratas».

À esquerda, convivem os absolutamente vencedores e os absolutamente derrotados. À direita, ainda que sem esse «absolutamente», também os há vencedores e derrotados. E, já agora, como sempre, também valerá a pena incluir aqui os vencedores e derrotados, dentro dos próprios vencedores e derrotados.

Confesso que, desde a jornada eleitoral de 30 de Janeiro, me tenho sentido mais preocupado que confirmado. Porque se eu – assumo-o já –, me vi copiosamente derrotado (não apenas no meu voto em concreto, mas no sentido que desejava para os resultados e o futuro), ansiava por mais companhia no difícil sentimento de aceitação, de compreensão e, no final, de adesão democrática à vontade da maioria (ou, se preferirem, e para ser mais rigoroso, de adesão às várias vontades maioritárias que se manifestaram).

Dirijo-me em especial à direita (por diplomacia e ressalva e, porventura, por alguma infantilidade ou preconceito, esta direita que aqui convoco é por referência aos partidos que ocupavam ou ocuparão aquelas cadeiras, à direita do hemiciclo, que o PS deixou livres). E penso. Não se zanguem. Não se deixem dominar pelo desdém. Não vituperem os eleitores (e a sua clarividência ou inteligência). E muito menos repristinem, fora de horas, os malefícios do sistema eleitoral e do método de Hondt.

É que os eleitores não são mais ou menos inteligentes que os que justificam a vossa afirmação (para os que celebram tê-la alcançado), face aos que determinaram a grande decisão da maioria absoluta do Partido Socialista. Não se percam no desdém nem vituperem esses tais eleitores, porque são os mesmos que lutaram por seduzir e continuarão a querer seduzir no futuro (futuro esse, que se se cumprir como anseiam, será pelas mãos desses mesmos que hoje desdenham). E também não nos venham agora com a crise de representatividade e com a história dos votos desperdiçados que o sistema eleitoral e o método de Hondt em particular potenciam. É com esse mesmo sistema – e atrevo-me, por causa desse mesmo sistema – que pode haver esperança nessa maioria de sentido contrário que anseiam e que reputariam (ou reputarão) de mais inteligente e sábia.

Agora, com maturidade, sem desdém e com responsabilidade (cada um com a sua) aceitemos e confiemos. No tal respeito pelas minorias, na separação de poderes, na independência do sistema judicial. E na democracia, que se cumpriu.

A democracia, de facto, não é fácil de praticar. Mas convém cultivá-la nos seus traços essenciais, sob pena de minarmos a casa comum e de não nos darmos (nem merecermos) ao respeito.

E, já agora, tenhamos sempre presente quer o princípio da maioria quer os seus limites, o Estado de Direito, os traços essenciais de uma democracia pluralista (o respeito pelas minorias, a separação de poderes, a independência do sistema judicial e a irresponsabilidade dos seus titulares, por exemplo). É aí que se inscreve a razão para a tal magnanimidade – seja nos vencedores seja nos vencidos. Porque as regras, o respeito e a adesão firme a essas regras, são condição quase primacial. Não as questionemos em contexto de disputa eleitoral e, ainda menos, nelas projetemos o eventual fracasso obtido. Sejamos verdadeiros democratas.

Porque só assim é possível viver num país e numa comunidade onde vencedores e vencidos são respeitados, representados e, no fundo, se sentem bem.

Desta vez (ou outra vez) ganhou o Partido Socialista com 41,68%, a que corresponderam 2.246.637 votos e uma maioria absoluta de 117 deputados eleitos. Não sei se se ficou a dever à maior ou menor inteligência do eleitorado. Não sei se se ficou a dever às regras que são mais ou menos boas. Nem sei se se ficou a dever aos méritos (porque não os considerarmos também?) de vencedores e vencidos. Sei, contudo, que se cumpriram as regras e que os eleitores se pronunciaram em liberdade.

Agora, com maturidade, sem desdém e com responsabilidade (cada um com a sua) aceitemos e confiemos. No tal respeito pelas minorias, na separação de poderes, na independência do sistema judicial. E na democracia, que se cumpriu.

Agência Lusa –  Wikicommons CC BY 3.0

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.