Na hora da morte…eu compreendo

Compreendo quem na hora da morte grita por um fim de vida com dignidade. No entanto, preocupa-me que queiramos responder apressadamente a esse grito, abreviando a vida, em vez de cuidar com mais dignidade da hora da morte.

Compreendo quem na hora da morte grita por um fim de vida com dignidade. No entanto, preocupa-me que queiramos responder apressadamente a esse grito, abreviando a vida, em vez de cuidar com mais dignidade da hora da morte.

Eu compreendo o pedido de despenalização da eutanásia ou de suicídio assistido. Acompanhar, diariamente, pessoas no mais profundo sofrimento ajuda-me a entender. Compreendo sobretudo o grito de dor, de medo, que alguns de nós podemos ter sobre a hora da morte. A nossa e a dos nossos. Tolerarei? Estarei sozinho? Vou conseguir tratar da minha mãe, se ela ficar doente? Aguentarei o sofrimento? Que vida é esta, ver o meu pai preso a uma cama, num estado que já não vale a pena?

E a despenalização da eutanásia aquieta este nosso grito.

Não me vou deter sobre as agendas ou debates políticos sobre o tema. Reflito apenas sobre a experiência humana de sofrimento que pode estar por detrás do pedido de eutanásia. Penso no sofrimento de quem está sozinho no hospital, à espera de uma vaga que não chega ou de uma visita que não vem. Compreendo a exaustão de quem cuida dos seus que estão doentes e num sofrimento intolerável, que tantas vezes apelidamos de “desumano”. Imagino a angústia de quem está doente e o medo de ser um “peso” para os seus.

No outro dia, uma conversa com um amigo mais velho, o Pedro, fez-me ficar a pensar. Ele dizia-me:

– “Eu, quando já não estiver em condições e estiver a babar-me, só quero é que me matem ou eu mato-me. Não quero ficar cá a ser um peso para ninguém. As minhas filhas vão ter a vida delas e eu não quero que fiquem com a carga de tomar conta de mim.”

– “Se a eutanásia for legal, podes morrer noutras condições. E se não quiseres morrer, e se quiseres ficar por cá?”

– “Bom…nesse caso, vou sentir-me pior… Então… Irei pesar às minhas filhas, se posso escolher não lhes pesar?! Nem pensar!”

Esta conversa tomou um rumo inesperado, para os dois. A mim, deixou-me a pensar.

Nestes tempos de correria, cheios de exigências e solicitações, tratar dos nossos é mais uma tarefa no meio de tantas, essenciais, que não podemos nem queremos descartar. Os tempos de hoje não se compadecem. A exaustão chega a tantas famílias, no cuidado dos seus doentes ou mais velhos, podendo tornar-se insuportável. E a falta de esperança, neste cenário, parece apenas uma consequência óbvia.

Hoje podemos viver o medo de “pesar” aos outros, na vida exigente que já têm. Lutamos pela independência, sentindo a nossa vulnerabilidade tantas vezes como um impedimento.

Uma decisão de alteração de uma lei dificilmente terá um efeito apenas individual, ao nível da consciência de cada um. A alteração de uma lei, como grande parte das decisões numa sociedade, tem efeitos sistémicos.

Por isso, compreendo o grito que faz pedir a despenalização da eutanásia e do suicídio assistido. E o olhar sobre a eutanásia como um direito de liberdade individual, a morrer com dignidade. Mas uma decisão de alteração de uma lei dificilmente terá um efeito apenas individual, ao nível da consciência de cada um. A alteração de uma lei, como grande parte das decisões numa sociedade, tem efeitos sistémicos a nível micro, meso e macro. E sobre esses, não sei se estamos a refletir, nem sei se estaremos preparados para lidar.

Que impacto teria esta mudança em cada criança e jovem na sua relação com a doença e a vulnerabilidade? Que influência teria nas famílias, no olhar sobre os mais velhos e na forma como vamos cuidar na hora da morte? E que efeitos teria ao nível das políticas e do investimento nos cuidados das pessoas doentes em fim de vida, nos próximos anos?

E cada um de nós, ao ficar mais velho, profundamente vulnerável, não sei se terá coragem de decidir ficar “taralhoco” e a “babar-se”. Pesar sobre os seus quando pode decidir poupá-los a isso?

Eu compreendo quem na hora da morte grita por um fim de vida com dignidade. No entanto, preocupa-me que queiramos responder apressadamente a esse grito,  abreviando a vida, em vez de cuidar com mais dignidade, da hora da morte.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.