Voltar à minha Galileia

Enquanto professora, vejo a necessidade de adaptar aquilo que faço a esta nova realidade como um desafio exigente. Nunca o fizemos. Por isso, consola saber que a primeira coisa que me é pedida é que não tenha medo.

A vontade de desfrutar melhor este tempo da Páscoa tem-me feito voltar à passagem da ressurreição do Evangelho de São Mateus. Aí, é relatado o encontro entre Jesus e duas mulheres, Maria Madalena e Maria. Ambas tinham passado o dia de sábado a preparar o que precisavam para ir ao Seu sepulcro. Quando lá chegaram, aperceberam-se de que Jesus estava vivo e Ele próprio saiu ao seu encontro, dizendo-lhes:

«Não temais. Ide avisar os meus irmãos que partam para a Galileia. Lá Me verão».

 

Vale a pena ir mais fundo no recado que Jesus escolhe deixar quando, pela primeira vez, dá a melhor notícia que este mundo já recebeu. As Suas palavras têm-me acompanhado nos últimos dias e muito podem trazer, de forma particular, ao enorme desafio que, neste momento, é feito a todos os professores.

 

Enquanto professora, vejo a necessidade de adaptar aquilo que faço a esta nova realidade como um desafio exigente. Um desafio que, à primeira (e, confesso, à segunda e à terceira) assusta. Desinstala. Nunca o fizemos. Por isso, consola saber que a primeira coisa que me é pedida é que não tenha medo.

 

A serenidade que vem de ousar não temer é importante porque o medo pode tirar espaço para desfrutar o que é dito a seguir. Jesus pede àquelas mulheres que avisem os Seus amigos de que devem voltar para a Galileia, que lá O verão. Para os discípulos, a Galileia era o lugar onde passavam o seu dia a dia, onde viviam a sua rotina. Então, confiando nessa garantia, surgia em mim a convicção de que, sim, a novidade que a ressurreição de Jesus traz chega à Escola – e pode trazer luz para estes e para os tempos que se seguirão a esta crise. Afinal, também é lugar onde muitos passam o seu dia a dia e que faz parte da rotina de tantos.

O mesmo acontece com cada um de nós. Todos temos ‘uma’ Galileia. Todos temos um lugar a partir de onde fomos e somos chamados.

Para os discípulos, além de ser o lugar da sua rotina diária, a Galileia foi o lugar onde acompanharam de perto Jesus. Pela amizade que Lhe tinham, era um lugar cheio de memórias. De forma especial, e tal como o Papa Francisco lembra, é o lugar da memória do seu chamamento. Então, para eles, voltar à Galileia é também um convite a fazer memória do momento em que foram chamados por Deus, ponto de partida de todo o caminho que percorreram desde aí e que os levou à situação difícil que viviam naquele sábado.

 

O mesmo acontece com cada um de nós. Todos temos ‘uma’ Galileia. Todos temos um lugar a partir de onde fomos e somos chamados. E, claro, como professores também. A nossa vocação tem uma Galileia, à qual somos convidados a voltar. Parece contraditório que, num momento de maior dificuldade, o caminho possa passar por fazer memória. O que interessa não é andar para a frente? Sim. No entanto, fazer memória da nossa Galileia faz-nos voltar a olhar e perceber ao que fomos e somos verdadeiramente chamados.

 

A mim, este processo tem-me confirmado como sou chamada, em primeiro lugar, a acompanhar os alunos que me são confiados. Confirma-me que se trata de uma missão que vive de uma relação que se constrói todos os dias. É por isso que é tão exigente ser professor à distância. É por isso que nos reinventamos e nos desdobramos para, nestes dias, lhes deixarmos propostas que os ajudem aprender, tentando que não se sintam desamparados. É também por isso que percebemos que, à distância, não conseguimos replicar aquilo que se faz nas nossas escolas. E isto acontece porque, por mais meios tecnológicos que possam estar disponíveis (e que, em muitos casos, nem estão), a relação que cada professor constrói com os seus alunos precisa e vive de mais.

 

Nesta altura, tomar consciência disto poderia ser motivo de desânimo. Afinal, trata-se de perceber que estamos privados de algo fundamental para viver a nossa missão de forma plena. No entanto, penso que pode ser uma oportunidade. A oportunidade de aproveitar este tempo para uma reflexão que sinto que sou – e será que me posso atrever a dizer que somos todos? – chamada a fazer antes de voltarmos às nossas escolas.

 

Se, fazendo memória daquilo que me fez sentir chamada a ser professora, percebo o que é essencial, então isso tem de ter impacto nas prioridades que tenho enquanto acompanho e ajudo os meus alunos a aprender. Acredito que é por aqui que a Escola pode crescer quando, passada a crise, voltar a levar a sua missão sem ser à distância.

 

Para o próximo ano letivo, foi recentemente assegurada a universalidade no acesso digital – e essa poderá ser uma ferramenta importante. Mas somos chamados a mais. Acredito que somos chamados garantir que o investimento que é feito no(s) próximo(s) ano(s) letivo(s) vai mais fundo. Se reconhecemos que a relação entre professores e alunos é o nosso verdadeiro tesouro, então as decisões que se tomarem e as mudanças que se fizerem têm de o ter em conta. É esse tesouro que tem de ser privilegiado naquilo e na forma como propomos que os nossos alunos aprendam. Só com o foco naquilo que, durante esta crise, confirmamos que é importante para a Escola é que esta poderá cumprir de forma cada vez mais plena a enorme missão que tem.

Neste tempo, vemos como a Escola tem um grande caminho pela frente.

E nós, professores, também. O primeiro passo? Diria que passa por voltar à minha Galileia.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.