Vêm aí os cem anos: que levamos para a festa?

Dentro de um mês assinala-se o centenário da I Guerra Mundial. Os revivalistas imperialistas, na política, na religião, na vida social e familiar, no mundo do trabalho, vão encontrando, obviamente, pares e interlocutores por todo o lado.

Daqui a um mês, previsivelmente muitos líderes mundiais juntar-se-ão em Compiège, no norte de França, para celebrar com toda a pompa o primeiro centenário do fim da Primeira Guerra Mundial. Será, também previsivelmente, uma cerimónia com a beleza que as bonitas paradas militares oferecem e com a inconsistência que o peso na consciência marca. No seu habitual discurso ao Corpo Diplomático acreditado junto da Santa Sé, o Papa Francisco aludiu em Janeiro a duas advertências que a História da Primeira Guerra Mundial nos faz.

A primeira é que vencer nunca significa humilhar o adversário derrotado. Quando falamos em humilhação referimo-nos, por exemplo, à insuportável sobrecarga imposta sobre a Alemanha no pós-guerra e que atiçou movimentos nacionalistas por demais conhecidos. Claro que podemos dizer que mereciam pagar pelo que fizeram – e este é um ponto que podemos levantar: o que queremos de facto dizer, quando falamos em justiça? Penalizar? Corrigir? Vingar? E pensamos no impacto social que as penas acarretam? Quando se fala em penas, importaria não só aferir o que o condenado deve pagar para repor o mal que fez, mas também – e sobretudo – que fruto queremos efectivamente com tal pena e quais serão as consequências que isso traz. No fundo, ao aplicar a justiça, aquilo que se quer é deixar claro ao condenado que ele errou ou cortar a cadeia do mal?

Este ponto conduz-nos à segunda advertência: a paz consolida-se quando as nações se podem confrontar num clima de igualdade. O desejo que algumas nações poderão ter de que outros países lhe estejam dependentes não promove a autonomia e liberdade e, por isso, a paz. O colocar-me num pedestal só para sentir que um outro precisa que eu lhe dê a mão, ou para que reconheça o poder que tenho ou a caridade que pratico, não é amigo da paz. O desejo de poder sobre os outros, ainda que mascarado de solidariedade, é inevitavelmente uma forma de violência, na medida em que não promove a prosperidade. Grande poder é o de ajudar e depois dar os meios para que o outro faça o seu caminho.

Não deixa de ser interessante ver como este olhar sobre as relações internacionais é tão humano, por, no fundo, ser uma transposição das relações interpessoais para as relações entre Estados. Por isso, no tal discurso, o Papa Francisco recorda as palavras de João XXIII, na encíclica Pacem in terris, dizendo que as relações entre as nações devem ser reguladas “segundo as normas da verdade, da justiça, da solidariedade operante e da liberdade”.
Por isso, este mundo é mesmo para nós: é um mundo para seres humanos. A edificação de grupos ou Estados fechados, desejosamente auto-suficientes, é, para além de muitas outras coisas questionáveis, viver dentro de um mundo imaginário. O mundo não é assim e não se sustenta assim. Mas, de facto, esta tendência de fechamento é galopante – e não só na política.

O estratega da campanha de Donald Trump, Steve Bannon, criou O Movimento, uma organização que procura apoiar movimentos populistas e nacionalistas na Europa. Não deixa de ser interessante notar como os EUA e a Rússia têm agora tantos amigos comuns no Velho Continente. Naturalmente que, em Itália, Bannon conta com Matteo Salvini, e é nesse país que construirá um centro de formação para este seu público. Um dos mentores desta iniciativa é Benjamin Harnwell, do Instituto Dignitatis Humanae, cujo presidente do Conselho Consultivo é o Cardeal Raymond Burke. Recordemos que este cardeal tem sido um dos mais críticos do Papa Francisco, por querer uma Igreja não que vá ao encontro de quem está fora e é “diferente”, mas que simplesmente congele num determinado período histórico (que nem sequer é o das raízes do Cristianismo, mas os séculos XVIII e XIX).

O entrosamento entre movimentos fechados na política e na religião pode não ser mera coincidência – e seria seguramente muito interessante explorar este tema. Os revivalistas imperialistas, na política, na religião, na vida social, na vida familiar, no mundo do trabalho, vão encontrando, obviamente, pares e interlocutores por todo o lado. A verdade é que pode não ser imediato – ou pelo menos nem sempre apetecível – ao ser humano reconhecer-se como igual ao outro e não superior, como irmão e não como chefe, como administrador dos bens e não como dono do mundo, como alguém que primeiro foi amado antes de poder amar. São estilos de vida diferentes: em guerra ou em paz, viver fechado num ideal construído ou viver aberto à vida, mergulhando fecunda e abertamente na realidade como ela é. Daqui a umas semanas, quando se falar das tentativas de paz no pós-Primeira Guerra, recordemos que paz queremos.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.