Tráfico de seres humanos: é preciso mais coordenação e salvaguarda das vítimas

Salvaguardar as vítimas, acolhendo-as, protegendo-as e legalizando-as, é o único caminho compatível com o tratamento humanista que, enquanto cidadãos, todos nos merecem.

A primeira definição de Tráfico de Seres Humanos (TSH), aceite pela comunidade internacional e transposta para o nosso Código Penal, consta de um dos Protocolos de Palermo da Convenção das Nações Unidas contra a Criminalidade Organizada Transnacional aprovada em 2000. É punido com pena de prisão, até dez anos, quem oferecer, entregar, recrutar, aliciar, aceitar, transportar, alojar ou acolher pessoa para fins de exploração, incluindo a sexual ou do trabalho, mendicidade, escravidão, extração de órgãos ou exploração de outras atividades criminosas mediante o uso de violência, rapto ou ameaça grave, abuso de autoridade resultante de uma relação de dependência, aproveitando-se de incapacidade psíquica ou vulnerabilidade da vítima. Assim prevê o artigo 160º do Código Penal Português. O consentimento da vítima não exclui a ilicitude do facto.

Segundo dados do Relatório da Comissão ao Parlamento Europeu e ao Conselho de 2020, o TSH é um crime altamente lucrativo que proporciona enormes lucros aos seus autores e impõe um custo tremendo à sociedade. Quase três quartos de todas as vítimas na UE eram mulheres e raparigas, sendo traficadas maioritariamente para fins de exploração sexual. Quinze por cento de todas as vítimas foram para exploração laboral no setor agrícola, em agências de emprego privadas, no setor da construção, na hotelaria e restauração, no setor da limpeza, em lojas noturnas, em instalações de lavagem de veículos, em empresas de recolha e reciclagem de resíduos. A exploração laboral afetava principalmente os homens. As outras foram encaminhadas para a mendicidade e criminalidade forçadas, casamentos fictícios forçados e associados à exploração, tráfico para venda de bebés, remoção de órgãos e adoção ilegal. Em Portugal, o tráfico para fins de exploração laboral é o mais sinalizado, com o setor agrícola a liderar a tabela, sendo maioritariamente de homens.

Em Portugal, o tráfico para fins de exploração laboral é o mais sinalizado, com o setor agrícola a liderar a tabela, sendo maioritariamente de homens.

O TSH é um crime transnacional desenvolvido por redes de criminalidade organizada que se alimentam da fragilidade das pessoas traficadas. Estes grupos estão também frequentemente ligados a outras formas de criminalidade como a introdução clandestina de migrantes, o tráfico de droga, o contrabando de mercadorias, a extorsão, o branqueamento de capitais, a fraude documental, a fraude com cartões de pagamento e os crimes contra a propriedade. Apresentam níveis cada vez mais elevados de profissionalismo e especialização, com uma ampla utilização da Internet e das redes sociais, nomeadamente através de tecnologias encriptadas e da darkweb. Estas tecnologias são usadas para recrutar vítimas, organizar o seu transporte e alojamento, publicitar os seus serviços, comunicar com outros autores de crimes, controlar as vítimas e transferir os produtos do crime. Nos últimos anos, com a chegada de migrantes à UE em busca de proteção internacional, há um perigo acrescido de TSH, num contexto em que as redes de tráfico se aproveitam da vulnerabilidade destes grupos de alto risco, bem como dos procedimentos de asilo, para mais tarde sujeitar as vítimas à exploração.

O TSH é indissociável de contextos socioeconómicos, culturais e pessoais marcados pela pobreza e a fome, o desemprego e a precaridade, a insegurança e a dependência económicas, a falta de oportunidades no acesso à educação e à formação profissional, à migração e ao racismo, aos conflitos e guerras, à desigualdade e práticas discriminatórias contra as mulheres. Isto existe porque aceitamos um modelo económico assente na sobre-exploração e no desrespeito pelos direitos humanos, no qual prevalece a obtenção do lucro máximo. As vítimas são tão só pessoas que se arriscam pela possibilidade de uma vida melhor, para si e para os seus. Sujeitam-se a viver em condições desumanas e degradantes: habitações exíguas, húmidas e sobrelotadas, frio, fome. São alvo de coação através da retenção dos documentos de identificação e de dívidas (custos de transporte e rendas descontados nos ordenados) que servem de pretexto para adiar a retribuição do trabalho.

As vítimas são tão só pessoas que se arriscam pela possibilidade de uma vida melhor, para si e para os seus. Sujeitam-se a viver em condições desumanas e degradantes: habitações exíguas, húmidas e sobrelotadas, frio, fome.

Com a pandemia, apesar da diminuição das denúncias pelo crime de TSH, associada às medidas de contenção da Covid-19, o tráfico humano manteve-se. As vítimas ficaram ainda mais fragilizadas e o fenómeno de Odemira foi bem evidente. O fecho de fronteiras fez reduzir a utilização de Portugal como país de trânsito, mas os exploradores logo se viraram para as atividades laborais convencionais, maximizando os lucros no curto prazo.

A Comissão Europeia adotou este ano uma nova Estratégia de luta contra o tráfico de seres humanos (2021-2025). Em Portugal existem Planos Nacionais de Prevenção e Combate ao TSH, respetivos Relatórios de Execução e um Sistema de Referenciação Nacional. Em 2008 foi criado o Observatório do Tráfico de Seres Humanos (OTSH).

Mas não chega!

O combate ao TSH passa pelo desenvolvimento económico baseado na valorização do trabalho e dos salários, no combate à precaridade, na aposta num sistema público de segurança social forte, num serviço nacional de saúde público, universal e gratuito, numa escola pública e democrática que garanta a igualdade de direitos e de oportunidades para todos. Exige soluções urbanísticas e de habitação, que assegurem o direito a uma habitação condigna para os trabalhadores imigrantes, a preços compatíveis com os seus rendimentos. Exige o combate à impunidade, a condenação inequívoca não apenas dos traficantes, mas também daqueles que beneficiam do crime e exploram as vítimas, medidas destinadas a privar os traficantes do seu lucro financeiro.

Em vez de se defender os interesses dos exploradores e do agronegócio, impõe-se uma política baseada na prevenção, proteção, apoio e acolhimento das vítimas e regularização da sua situação, contrariando a vulnerabilidade provocada pela falta de documentos e situação irregular perante o Estado. A prevenção deve passar também pelas entidades locais que conhecem melhor o terreno e pelo envolvimento das empresas agrícolas e de construção, sensibilizando-as para os riscos de contratarem os trabalhadores através de empresas de trabalho temporário. Era bom investigar mais e seguir o rasto destas empresas que, quando são alvo de investigação por TSH, transferem a sua atividade para outra localidade, outro país ou se dissolvem para constituírem nova empresa com outro nome. No Reino Unido é crime recrutar trabalhadores a uma empresa de trabalho temporário que não esteja licenciada, bem como fornecer trabalhadores sem a dita licença.

A prevenção deve passar também pelas entidades locais que conhecem melhor o terreno e pelo envolvimento das empresas agrícolas e de construção, sensibilizando-as para os riscos de contratarem os trabalhadores através de empresas de trabalho temporário.

Torna-se imperioso haver mais coordenação entre os vários ministérios (Economia, Trabalho e Segurança Social, MAI), dar mais meios financeiros, humanos e tecnológicos a quem deteta, investiga, instrui e julga, fazer o «seguimento da pista do dinheiro», nomeadamente através de investigações financeiras e investigações conjuntas.

Salvaguardar as vítimas, acolhendo-as, protegendo-as e legalizando-as é o único caminho compatível com o tratamento humanista que, enquanto cidadãos, todos nos merecem.

Termino lembrando a aplicação “ACT – Agir contra o Tráfico Humano”, uma aplicação gratuita para telemóvel com vista à prevenção, combate e proteção das vítimas de TSH. Disponibiliza informação sobre este crime e direitos das vítimas; como reconhecer e sinalizar situações, apoiar e proteger as vítimas; o que fazer e onde se dirigir. É desenvolvida pelo MDM – Movimento Democrático de Mulheres em parceria com o OTSH.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.