Tempos de uma justiça diferente

Se ontem estávamos certos da nossa divisão, amanhã, quando as diferenças regressarem, haverão de estar influenciadas por essa experiência de igualdade, de partilha de condição, de justiça, ainda que de uma justiça diferente.

Como é próprio deste tempo de confinamento (ou quarentena, ou distanciamento social ou, até ver, do «fique em casa») não me faltam visitas. Sim, visitas. E mesmo muitas. Não as convencionais – que essas estão desaconselhadas e eu vivo cercado de cumpridores – mas daquelas que nos põem mais à prova. Refiro-me aos momentos de esperança logo seguidos de profundo pessimismo. Ou os de saudade prontamente interrompidos de entusiasmo. E ainda – talvez os piores – os que me trazem ternura e gratidão de braço dado com medo e insegurança. E tantas outras, tão ambíguas quanto insinuadas. Serei eu, no meu melhor, refém das contradições e das emoções, que umas vezes tolhem outras emancipam. E certamente serei eu a olhar do conforto da janela de casa, ainda do lado de fora das provações que nos ameaçam.

Uma visita houve, contudo, que me tomou mais completamente. Distraído que estava (e que vivo!) nos meus afazeres domésticos e profissionais (sou dos que pode «sobreviver» com o teletrabalho), dei por mim, ao romper de uma noite chuvosa, esmagado por uma estranha sensação de multidão num vazio impressionante. De joelhos, absorto e entregue, ali estava, em plena Praça de São Pedro. «Estamos todos no mesmo barco», soou-me e ficou-me no coração. O Papa Francisco, de olhos postos na cruz, gritava-nos baixinho a propósito de um vírus que nos sobressaltou, «estamos todos no mesmo barco»…

Mas que mesmo, que barco, que todos?

Pode ser a mera condição humana, que a todos define e iguala em dignidade. Talvez seja. Mas insisto. Que barco é este, em concreto, que nos irmana tanto, que nos entrelaça na provação, que nos convoca de igual modo e sem distinção?

O vírus que nos trouxe a pandemia, trouxe-nos também um chamamento surpreendente. De repente, estamos todos no mesmo barco e, atrevo-me a dizer, do qual nunca devíamos ter saído.

O vírus que nos trouxe a pandemia, trouxe-nos também um chamamento surpreendente. De repente, estamos todos no mesmo barco e, atrevo-me a dizer, do qual nunca devíamos ter saído.

Nesse barco está o contágio fácil e insinuado. Que não distingue nem prefere em função de qualquer condição social ou económica.

Nesse barco está a dor de uns – os que padecem – e de outros – que ficam à margem dos seus. Que também não distingue nem prefere em função de qualquer condição social ou económica.

Nesse barco – sempre o mesmo – está ainda o isolamento, o despojo, a entrega nos hospitais de São João ou Santo António, Santa Maria ou Curry Cabral. Que, de igual modo, não distinguem nem preferem em função de qualquer condição social ou económica.

Nesse barco estão os que resistem, os que perdemos e os que perderam. E também aí não há distinção em função de qualquer condição social ou económica.

É o barco dos ricos e dos pobres, dos casados e solteiros, dos que têm filhos e pais e dos que não têm nem filhos nem pais. Dos que conhecem os melhores médicos e enfermeiros, e dos que não conhecem ninguém. Dos que sempre tiveram tudo e dos que nunca ou quase nunca tiveram nada.

Haverá barco mais eloquente, mais certo, mais igual? Haverá barco mais coeso, mais humano? Haverá barco mais justo para todos?

A bonança – cá está, é esta agora que me visita – só pode vir desta louca e dura experiência de solidão, de dependência, de sofrimento, e sempre rigorosamente iguais.

Não. Ninguém deseja nem procura uma pandemia. E certamente ninguém se revê nesta violência que é a solidão imposta, os abraços negados e adiados, os amores impedidos, em que nem as lágrimas podem ser partilhadas na hora da despedida.

A bonança – cá está, é esta agora que me visita – só pode vir desta louca e dura experiência de solidão, de dependência, de sofrimento, e sempre rigorosamente iguais.

Se ontem estávamos certos da divisão entre ricos e pobres, entre privilegiados e segregados, entre importantes e anónimos, amanhã, quando as diferenças regressarem (e regressarão, bem sabemos) elas haverão de estar influenciadas por essa experiência de igualdade, de partilha de condição, de justiça, ainda que de uma justiça diferente.

Hoje, segunda-feira de Páscoa, recebo mais duas visitas em especial. Não são nem saudades, nem memórias, nem remorsos. Visitam-me, de braço dado, a esperança e a fé.

Não haverá caminho de conversão mais humano que o da própria dor. Nós, os ricos, os privilegiados, os importantes, experimentámos, talqualmente, os pobres, os segregados, os anónimos, a dor da solidão e da dependência, da distância e do abandono, e haveremos de cuidar muito melhor deles – que estão no mesmo barco! – e das suas dores.

A esperança, primeiro. Não haverá caminho de conversão mais humano do que o da própria dor. Nós, os ricos, os privilegiados, os importantes, experimentámos, talqualmente, os pobres, os segregados, os anónimos, a dor da solidão e da dependência, da distância e do abandono, e haveremos de cuidar muito melhor deles – que estão no mesmo barco! – e das suas dores.

E a fé, depois. Pois se também Deus, feito Homem, esteve quase só no seu caminho doloroso de morte. Pois se daí se saldou o nosso resgate. Pois também nós, criados à sua imagem, haveremos de colher desta tormenta o resgate do nosso barco.

Jesus Cristo ressuscitou? Ressuscitou, pois claro!

Pois nós, com Ele, também haveremos de ressuscitar.

Uma Santa Páscoa.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.