Sob uma neve de pólen

São livros difíceis [os de Agustina], dizem-me. Pois claro, porque não é fácil encarar a pintura de um espelho. São difíceis como é difícil estar de olhos abertos na vida. Livros escavados, que não seguem “em frente” mas “para dentro”.

Lembro-me dela no dia de São Jorge, há muitos anos, em Barcelona, sob uma “neve de pólen”. Subíamos os dois as Ramblas, de braço dado, a caminho de uma entrevista para a rádio, e Agustina ia falando como se escrevesse, saltando de assunto sem pedir licença, levando certa ideia a atravessar tempos e figuras com uma força e uma graça que parecia que poderia continuar a desenrolá-la para sempre, até que, de repente, sem aviso, a largava por outra. Incrivelmente, tinha lido um livrinho meu e, durante esse passeio, entre anedotas sobre cinema e cidades, arrasava-o com elogios. Nunca esqueci o seu conselho sobre o furor que é preciso para escrever.

E é essa, quer-me parecer, a chave de leitura da escrita de Agustina Bessa-Luís. Um furor é o que sentimos atrás das suas frases, a ligá-las; a ligar todos os seus livros anárquicos e justos, revolucionários e conservadores, lúcidos e misteriosos. Ao contrário da maior parte da ficção, boa ou má, os romances de Agustina não existem para dizer o que acontece, mas o que é. As personagens mil que habitam cada uma das suas histórias — se é “história” o termo certo para nomear esses exercícios de pensamento em torno de vidas e espaços — raramente se transformam, raramente põem um pé fora de si, “raramente” para não dizer nunca. É como se estivessem presas ao chão. Como se existissem sempre no interior de um contorno invisível, e o romance fosse o processo de tornar visível esse contorno que as limita, prende e define. São figuras que envelhecem paradas, por assim dizer, no seu lugar marcado, enquanto, atrás delas, o mundo vai mudando qual cenário de teatro. Aí está, porventura, outra boa pista para chegar ao essencial da escrita de Agustina: a ideia de lugar marcado. Não será por acaso que há tantas casas nos seus romances. Casas e classes sociais, casas e casamentos, casas e linhagens, casas e profissões, casas e terras, casas e conceitos, casas e formas de falar, casas e nomes, apelidos, alcunhas.

Essa importância do lugar — sugerindo que somos num sítio, num ponto, por oposição à ideia generalizada de que nos vamos revelando na viagem da vida — liga-se também ao carácter estático das grandes tiradas — os célebres “aforismos” de Agustina —, frases com uma força tal que rasgam o texto e o fazem parar uma e outra vez. E também ao impulso retratista desta literatura, mais interessada em “pintar” figuras por fora e por dentro do que em dar a vê-las em sequência, em ação, “narrativamente”. Esta é a escrita de um olhar especialíssimo, inimitável, que não só não tem ilusões em relação a qualquer espécie de “objetividade” como a recusa com orgulho; uma forma de ver o mundo que é, desde logo, um estilo e um programa. Os romances de Agustina caracterizam-se por uma brusquidão e uma estilização que, sim, tem mais a ver com pintura e “quadros” teatrais do que com fotografia ou filme. (O que, aliás, explicará a ligação ao cinema de Manoel de Oliveira; mas isso daria para toda uma outra conversa.)

Há quem, lendo a obra de Agustina, se fique por admirar a criação de ambientes e a formulação de belas frases, não percebendo que o dom desta escrita está muito para lá disso. No universo de Agustina, as coisas não mudam, mas ganham profundidade e luz.

Há quem, lendo a obra de Agustina, se fique por admirar a criação de ambientes e a formulação de belas frases, não percebendo que o dom desta escrita está muito para lá disso. No universo de Agustina, as coisas não mudam, mas ganham profundidade e luz. Não mudam, mas surgem tão curiosamente entrançadas, com tal variedade, tantos matizes, que “o que tem de ser” acaba por não pesar demasiado. Se não há hipótese de mudança, também não chega a haver cinismo e desistência. Há, pelo contrário, uma energia, uma vontade de avançar, de buscar sempre mais ligações, clarificações, contrastes, graças ao que talvez se possa chamar uma imaginação feita de ideias (por oposição ao pensamento imaginativo da maior parte dos ficcionistas). Uma imaginação que tem ao seu serviço o uso genial da ironia e do humor. Porque estas “histórias” — menos narrativas no sentido próprio do que “Histórias” individuais ou familiares — também são um modo de se zurzir nalguns podres do nosso viver coletivo ou, mais genericamente, da sociedade contemporânea: do politicamente correto à mediocridade, da presunção à estupidez, do moralismo à hipocrisia, etc.

Para não falar do bálsamo anticlichê que é qualquer página de qualquer romance de Agustina Bessa-Luís. Como esta passagem de Vale Abraão, em que, ao ser questionada sobre a razão de sermos um país de poetas, Ema responde: “Sei lá! Perdi uma luva, e atirei a outra fora porque tinha perdido a primeira. Depois encontrei-a e tive que atirá-la ao lixo, que era o que tinha feito à segunda. Isto é poesia ou o que é?”

São livros difíceis, dizem-me. Pois claro, porque não é fácil encarar a pintura de um espelho. São difíceis como é difícil estar de olhos abertos na vida. Livros escavados, que não seguem “em frente” mas “para dentro”. Como é que isso se consegue? É esse o mistério, é esse o génio de Agustina. Temos de ler a sua obra; ler e reler, sempre e mais. Só se consegue com a dose certa de fúria e humor. Olha, às tantas, é isso o furor.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.