Retórica avançada

Mas como se resolve na prática esta questão, quando não há provas, passaram mais de trinta anos e quando o único “sinal” que temos é a ira do acusado e a tranquilidade do acusador num mundo de agitação estéril que privilegia a primeira e ignora a segunda; ou melhor, que não atribui valor nem a uma nem à outra?

Como se deve comportar alguém que é acusado injustamente? A pergunta surge por causa da audição no Senado americano ao juiz Brett Kavanaugh, acusado de ter tentado violar Christine Blasey Ford, há 36 anos. A pergunta é justificada neste contexto porque uma pessoa inocente – sabemo-lo desde Sócrates (não José) – não pode fazer outra coisa a não ser ficar quieta e sossegada. Uma pessoa inocente de uma acusação injusta deve ser corajosa ao ponto de não mostrar revolta pela injustiça de que é alvo, porque sabe que o verdadeiro criminoso é aquele que acusa falsamente.

Brett Kavanaugh apresentou-se ao Senado com indignação e ira. Diria que para a maioria foi convincente no seu testemunho, mesmo com a teoria da conspiração de que tudo não passaria de uma vingança dos Clinton. Afinal, Sócrates (não José) já lá vai, ninguém lê Platão, e até há quem consiga perceber o que diz Jair Bolsonaro. Ou seja, Kavanaugh defender-se com emoção “a la Facebook” foi certamente credível para muitos para quem a mera agitação é sinónimo de verdade. Os defensores do provérbio “quem não se sente, não é filho de boa gente” compreendem a dor daquele que se grita injustiçado perante uma acusação aberrante. Os que estão interessados em saber a verdade só viram uma pessoa descontrolada à mínima recordação.

Depois da audição, Brett Kavanaugh respondeu a perguntas dos senadores e reagiu muitas vezes desadequadamente nas respostas. Insistiu em mencionar a cerveja que gostava de beber (tanto que foi objecto de um sketch no Saturday Night Live) quando era adolescente – enquanto negava que teria perdido a noção ou mesmo os sentidos – e negou que as referências feitas no livro de curso a uma rapariga fossem de cariz sexual. Tanto a insistência no tema da cerveja como ter recusado a interpretação comum de certas expressões revelam um Kavanaugh aflito em parecer um adolescente que fazia asneiras como qualquer outro e uma pessoa mentirosa.

Mentir ao Senado na audição deveria ter sido suficiente para não ser nomeado. Noutra situação mais mundana de “entrevista de emprego”, acredito que a suspeita de agressão sexual teria sido suficiente para o afastar da corrida. Mas claramente o seu comportamento na audição deveria tê-lo impedido de ocupar o lugar deixado vago pelo juiz Anthony Kennedy. Será prudente ter um juiz no Supremo que não hesita em perguntar a uma senadora se também não bebeu uns copos a mais quando era jovem? Haverá alguma situação em que uma reacção destas possa ser desvalorizada?

Brett Kavanaugh não deveria ter sido nomeado por razões que vão além da sua responsabilidade nos acontecimentos que terão tido lugar numa reunião de miúdos em 1982.

Brett Kavanaugh não deveria ter sido nomeado por razões que vão além da sua responsabilidade nos acontecimentos que terão tido lugar numa reunião de miúdos em 1982. A suspeita é muito grave, a vítima é credível e sólida – uma mulher vítima de agressão sexual ou violação que não seja doutorada em Stanford tem muitas dificuldades em ser ouvida, quanto mais respeitada – e o comportamento na audição revelou um desequilíbrio emocional que não queremos ver em quem tem muito poder.

Kavanaugh tinha 17 anos e era aluno na Georgetown Preparatory School, um prestigiado liceu jesuíta para rapazes em Bethesda, no Maryland. Blasey Ford tinha 15 anos e estudava num liceu para raparigas, a Holton-Arms School, na mesma cidade. Ter-se-ão cruzado numa festa e Kavanaugh, juntamente com um amigo, Mark Judge (curioso apelido), terão cercado Ford num quarto, onde Kavanaugh a terá tentado violar. Ter acontecido há 36 anos não é moralmente relevante na medida em que cada pessoa é responsável pelos seus actos quer aos 17 quer aos 50 quer aos 77 anos até morrer. Tapar a boca de uma rapariga que é atirada para uma cama contra a sua vontade não é um comportamento típico de um adolescente. E Ford tem “100% de certeza” de que foi Brett Kavanaugh quem a atacou.

Por exemplo: por que carga de água há-de uma pessoa sujeitar-se a humilhações e ameaças de morte se não estiver a dizer a verdade?

A pergunta a fazer em relação a Blasey Ford terá de ser de “porquê” ou “para quê”. Queremos perceber que motivações teria para mentir. Por exemplo: por que carga de água há-de uma pessoa sujeitar-se a humilhações e ameaças de morte se não estiver a dizer a verdade?
Mas como se resolve na prática esta questão, quando não há provas, passaram mais de trinta anos e quando o único “sinal” que temos é a ira do acusado e a tranquilidade do acusador num mundo de agitação estéril que privilegia a primeira e ignora a segunda; ou melhor, que não atribui valor nem a uma nem à outra? No partido republicano, felizmente, ainda há quem pense. A senadora do Maine, Susan Collins, fez uma distinção sofisticada na sua defesa de Kavanaugh. Admitiu ser verdade que Ford foi atacada, mas não que o atacante tivesse sido Brett Kavanaugh. Ao separar a acção do alegado autor, confirmou que a vítima era realmente uma vítima e não uma marioneta dos Clinton (como afirmara Kavanaugh), ao mesmo tempo que suscitou a dúvida sobre os “100% de certeza”. A retórica venceu naquele dia. A sensatez, não.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.