Reguengos serás

O caso de Reguengos convoca-me para a relação dos pais com os filhos e dos filhos com os pais. E conduz-me sofregamente à certeza de que estaremos a falhar. Há um caminho que teremos de percorrer, que estamos obrigados a cumprir: humanizar.

Não. Não cumpro uma hierarquia digna e refletida. Ajo e reajo com a fidelidade canina dos submissos à agenda do dia-a-dia e por isso ocupo-me das preocupações dos eventos que vão surgindo. Mas sempre muito ponderado (que é uma forma de disfarçar os condicionamentos humanos de que somos reféns). É assim que me vou oferecendo aos mais diversos temas. Que tanto vão da gaffe de um ministro como à crise dos refugiados, passando pelos temas da Covid-19 e os mais recentes das petições e contra petições sobre a educação sexual e a ideologia de género na disciplina de educação para a cidadania. E, claro, o fora-de-jogo ou o penalti por assinalar.

Manifestamente, não mora aqui nenhum herói. Manifestamente, não participo de qualquer refundação ou epifania do nosso mundo. E, manifestamente, sou o pequenino que sou, no tempo em que estou.

Há uma pergunta, contudo, que invariavelmente me assola. Ao ponto de, não poucas vezes, me perturbar. O que posso fazer? O que devo fazer? O que me cabe – a mim, com os meus condicionamentos e tibiezas – cumprir?

Naquela hierarquia que não observo, fui perturbado (e não mais me libertei) pelo caso macabro – sim macabro! – do abandono daqueles velhinhos no Lar de Reguengos de Monsaraz que «nos» morreram isolados e desidratados. Impressionou-me o caso concreto do Lar de Reguengos de Monsaraz. Mas impressionou-me mais imaginar quantos Lares de Reguengos haverá por esse país e mundo fora e, portanto, quantos velhinhos como nós, viverão e partirão sob esse manto do abandono.

Mas impressionou-me mais imaginar quantos Lares de Reguengos haverá por esse país e mundo fora e, portanto, quantos velhinhos como nós, viverão e partirão sob esse manto do abandono.

Dominado que tenho estado por este «o que devo fazer, o que me cabe cumprir?», cruzei-me na semana passada, aqui no Ponto SJ, com o provocador exercício da Inês Teotónio Pereira sobre «Como criar filhos felizes». Com humor e simplicidade (expressões sempre sedutoras de sabedoria e inteligência) a resposta da Inês é desarmante. Criar filhos felizes não deve ser um objetivo e não nos devemos sequer preocupar, porque «a felicidade deles depende fundamentalmente deles: das suas virtudes e dos seus defeitos. Nós, pais, apenas iluminamos os caminhos que eles vão seguindo, não os definimos». Não podia estar mais de acordo. E aqui estava a resposta. Para a felicidade dos nossos filhos. Mas também para a nossa, seus pais.

O caso de Reguengos de Monsaraz convoca-me diretamente para esta relação dos pais com os filhos e dos filhos com os pais. E conduz-me sofregamente à certeza de que estaremos enganados, de que estaremos a falhar naquela preocupação de felicidade e, no fundo, de que não estaremos a cumprir.

Num país em que a população com mais de 65 anos é muito superior à com menos de 15 anos, em que cada mulher tem pouco mais que um filho, em que a esperança média de vida vai aumentando, em que o saldo natural (a diferença entre nascimentos e óbitos) é cada vez mais negativo, é premente o tema do destino que oferecemos aos nossos pais, avós, tios (prefiro dizer pais e avós e tios, em vez de «idosos» ou «pessoas de terceira idade», porque é justamente o laço familiar que pretendo sublinhar). Já somos poucos a cuidar de muitos. E seremos ainda mais a ser cuidados por ainda menos.

Esse caminho é, afinal, muito simples. Humanizar. E, convenhamos, não há nada de mais humano do que a família. E a verdade é que falta família, está-nos a faltar a família e está, muito em especial, a soçobrar a prioridade à família.

Em face destes dados – que só se agravarão com a grande massa de população na antecâmera dos 65 anos e que ainda é fruto de períodos de forte natalidade – eu não consigo verberar a inevitável proliferação de lares, de centros de dia, de casas de acolhimento e de toda esta rede de suporte aos mais velhos. Eu admito não só essa inevitabilidade como essa necessidade. Mas há um caminho que teremos de percorrer, que estamos obrigados a cumprir e que, já agora, nos interessa fomentar. Esse caminho é, afinal, muito simples. Humanizar. E, convenhamos, não há nada de mais humano do que a família. E a verdade é que falta família, está-nos a faltar a família e está, muito em especial, a soçobrar a prioridade à família.

Lugares como os de Reguengos de Monsaraz – os tais lares e centros de dia – deviam surgir nas nossas vidas apenas como último reduto, como recurso de última rácio, e sempre em complemento da família. E mesmo nessa hipótese, com a presença assídua, com o convívio e o interesse da família. Porque não há ideal maior (qual testamento vital!) que ficar, até ao fim (sim, até ao fim), com a família. Com os filhos, os netos, os sobrinhos. Porque por mais luxuoso que possa ser o lar, não há lar mais luxuoso que a família. Onde há filhos, onde há pais. Que se tratam e se cuidam amorosamente como filhos e como pais.

Regresso ao tema que me anima (ou àquele «o que devo fazer, o que me cabe cumprir?»). E penso também naquele programa que a Inês Teotónio Pereira nos propunha de simplesmente iluminarmos os caminhos dos nossos filhos. Regressemos, pois, à família. Cuidemos amorosamente dos nossos pais. Iluminemos, pelo nosso exemplo, esses caminhos de liberdade dos nossos filhos.

Porque como nos diz a sabedoria popular, filho és, pai serás. Ou Reguengos serás.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.