Privilegiados

É certo que não podemos mudar o mundo com decisões sobre se damos 2 reais pelas balinhas de uma criança cujo olhar já tem muito pouco de felicidade. Mas podemos usar o que vemos todos os dias para termos noção de quão privilegiados somos.

“Quer comprar balinha? É para ajudar a família”. Aquele menino não tem mais de 5 anos e percorre a Oscar Freire, a rua mais seleta da cidade de São Paulo, com a família – as irmãs e a mãe vendem panos da loiça (5 por 10 reais), o menino vende doces (2 reais o pacote). É ele quem tem mais “sucesso”, desconfio de que pelo olhar triste e assustado, pela evidência absurda de que não devia estar a vender balinha (rebuçados) mas sim a comê-las ou a brincar com carros e bonecos ao pé dos amigos da sua idade.

Observei toda a cena sem comprar os doces. Debati-me, como sempre, com dois sentimentos antagónicos enquanto ele por ali andou e não cheguei a qualquer conclusão antes da sua partida, meio sorriso e mão rechonchuda a agradecer aos compradores. Se comprar balinhas estou a contribuir para que o comportamento não mude; se não comprar, será que aquela família tem o que comer hoje ao jantar?

O mais ridículo é que penso nisto tudo enquanto estou sentada numa das mais concorridas esplanadas da Avenida, depois de ter ido comprar um presente numa daquelas lojas, a aproveitar umas férias que decidi tirar para aproveitar o facto de ter um casamento deste lado do Atlântico. Voei 10 mil quilómetros, voltei a lugares que me fazem muito feliz, comi as refeições que me despertam memórias, encontrei amigos queridos, decidi se queria experimentar o restaurante da esquerda ou da direita. Fiz algumas escolhas para poder fazer esta viagem, mas uma delas nunca foi sobre a comida que poderia ter, todos os dias, na mesa.

Do cimo do meu privilégio, enquanto decidia se dava ou não 2 reais àquela criança que não devia estar ali, não me lembrei de que há quem não tome a comida por garantida (enquanto bebia o meu café e comia o meu pão de queijo de pura gulodice). Há quem não saiba o que é abrir a torneira e saber que terá sempre água, há quem não receba as contas no correio sem uma pontada de angústia, há quem não saiba se vai conseguir dar jantar aos filhos nesse dia, ir ao médico com eles, comprar medicamentos, sapatos que sirvam… Há quem não possa tomar decisões ridículas que achamos serem relevantes (que blusa comprar, que fiambre escolher, que viagem fazer), simplesmente porque elas não chegam nunca a ser uma questão.

Atualmente, só no Brasil há mais de 54 milhões de pobres. Desses, mais de 15 milhões vivem abaixo do limiar da extrema pobreza. Os números podem ser interpretados de várias formas, mas não mentem: no Brasil, há mais de um Portugal a viver com menos de 5 euros por dia (cerca de 150€/mês). No mundo, os dados mais recentes apontam para mais de 1,3 mil milhões de pobres. Países como os EUA, um dos mais ricos do mundo, têm milhões e milhões de pessoas que tentam, todos os dias, sobreviver – sem teto, sem comida, sem esperança.

É certo que não podemos mudar o mundo com decisões sobre se damos 2 reais pelas balinhas de uma criança cujo olhar já tem muito pouco de felicidade. Mas podemos usar as situações que vemos todos os dias para termos noção de quão privilegiados somos – foi isso que aconteceu comigo.

Enquanto lutava com lembranças menos boas de acontecimentos recentes, memórias que quero por para trás das costas, e que a certa altura me pareceram a maior tragédia do mundo, aquele menino de 5 anos fez muito mais por mim do que eu por ele: eu nunca cheguei a dar-lhe os 2 reais. Ele mostrou-me que eu devia ser muito mais grata do que tenho sido! E lembrou-me de que também está na minha, na nossa, mão partilhar com quem tem menos aquilo que, graças a Deus, não nos falta.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.