Para que servimos, se não servimos?

Somos chamados a fazer o que está ao nosso alcance, ainda que aos nossos olhos seja pouco. E o que está ao nosso alcance, quando vivido o sentido mais profundo de comunidade, é muito mais do que o mundo entre as nossas paredes.

«Para que servimos, se não servimos?» Foi com esta questão que uma amiga respondeu, há dias, num grupo do WhatsApp, a um agradecimento que foi ecoando nas mensagens de todos, perante uma generosa e abnegada oferta que fez do seu tempo e esforço. E esta questão – tão parca em palavras, mas tão rica em essência! – tem-me acompanhado desde então.

Para que sirvo, se não sirvo? Quão fácil é que a correria desenfreada entre a animação de educar filhos, a azáfama do trabalho e a canseira das tarefas domésticas descambe num rodopio inconsciente em torno do «eu». Se não souber regressar sempre ao meu desejo mais profundo de em tudo amar e servir, num ápice faço de mim própria o centro. Mais ainda nestes tempos, em que o distanciamento social e o confinamento se tornam desculpas perfeitas para nos afastarmos da preocupação pelo outro!

Neste último ano, chamados a viver mais recolhidos, entre paredes, percebo que, em família, crescemos muito, porque nos demos ainda mais uns aos outros. O espaço de um foi cedido ou partilhado com o outro, a atenção primeira foi dada ao que mais precisava, a ajuda não foi adiada. Mas há um silêncio e um vazio que nos foram assolando: esta casa, onde cabe sempre mais um, não tem aberto portas; a campainha não toca; não há cotoveladas à mesa a reclamar margem de manobra. Como podemos nós, como família, sermos família para os outros, nestes tempos de pandemia?

Talvez seja aceitável um simples baixar de braços. Uma rendição à inércia, por evidente sentimento de impotência. Mas Deus não se desorienta e vai-nos revelando que, até em pequenos gestos, se atinge a grandeza do serviço.

Talvez seja aceitável um simples baixar de braços. Uma rendição à inércia, por evidente sentimento de impotência. Mas Deus não se desorienta e vai-nos revelando que, até em pequenos gestos, se atinge a grandeza do serviço.

Mudo aqui o rumo à história, para chegar exatamente ao mesmo fim. Julgo que muitos já se terão deparado com a campanha Pelos Sonhos do Tomás. Alguns estarão a acompanhar em oração o Tomás e a família, e sabem que ele está em Barcelona, para fazer novos tratamentos, inserido num ensaio clínico. Ora, o Tomás não morre de amores pela comida de hospital e a comida da mamã tem sempre outro sabor. Principalmente, se forem umas salsichas de ave fumadas da marca de uma cadeia portuguesa de hipermercados, que os pais não conseguiram encontrar no país vizinho! Porque o Tomás não pôde regressar a Braga após o primeiro ciclo de tratamentos, a mãe Ana deu cá um salto, na semana passada, para tratar de vários assuntos… e para comprar alguns frascos das ditas salsichas. Sim, porque o rapaz não se deixa enganar: mesmo em provas cegas, sempre as soube distinguir! Qual não foi o espanto da Ana quando constatou que nenhum dos hipermercados da cadeia, na cidade, tinha stock do produto. Bastou comentar isso no grupo que lançou a campanha, que, nesse mesmo dia, dezenas de hipermercados da região foram calcorreados em busca das famosas salsichas, cada um a contactar mais alguém que morava perto de outra loja e, como tal, a ela se podia deslocar. Nada de resultados, ou quase nada. Mais tarde, chegou a notícia: o artigo foi descontinuado e, apenas nalgumas lojas do país, havia ainda um ou outro exemplar da espécie em extinção. Talvez fosse aceitável um simples baixar de braços. Mas alguém arranjou a lista das lojas em que o sistema indicava haver stock. E, num Portugal fechado entre paredes, os primos de uma amiga de uma amiga compraram 14 frascos de salsichas de ave fumadas em Vila Franca de Xira, o amigo de um tio de outra amiga, que iria fazer um transporte até Braga, trouxe-os ainda antes de nascer o dia do regresso a Barcelona, e um amigo levantou-se às 4h30 para os ir receber. Entretanto, chegou uma nova notícia: a equipa da Direção Comercial da cadeia de hipermercados já contactou a fábrica que produzia o artigo.

O que é dado viver ao Tomás e família deixa-nos a todos envoltos num enorme sentimento de impotência. Mas, em vez de nos deixarmos acorrentar pela nossa incapacidade de fazer com que tudo volte ao que era antes, Deus desafia-nos a olhar para o serviço a outra escala. Somos chamados a fazer o que está ao nosso alcance, ainda que aos nossos olhos seja pouco. E o que está ao nosso alcance, quando vivido o sentido mais profundo de comunidade, é muito mais do que o mundo entre as nossas paredes. Aí, fazemos caminho juntos, na oração e num frenesim amoroso em busca das salsichas prediletas.

Para que servimos, se não servimos?

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.