Papa Francisco: um intelectual?

Uma leitura importante para compreender os gestos e palavras do Pontificado do Papa Francisco e para perceber a continuidade do pensamento de Bergoglio com os grandes teólogos e autores do seu tempo.

A editora Lucerna publicou recentemente a tradução da obra do professor de filosofia moral e ensaísta Massimo Borghesi cujo título original, em italiano, se apresenta como Una biografia intellettuale de Jorge Mario Bergoglio (Jaca Book, 2017). Traduzido pelo Frei Ary E. Pintarelli, ofm, a versão portuguesa do livro intitula-se Jorge Mario Bergoglio. As raízes do pensamento do Papa Francisco (Lucerna, 2019). Trata-se de um estudo importante e bem fundamentado sobre as fontes intelectuais que moldaram a formação de Bergoglio. Desvanece-se, assim, o preconceito que por vezes paira numa certa opinião pública segundo o qual, contrariamente aos seus predecessores, nomeadamente o reputado teólogo Ratzinger, o atual Papa seria incapaz de se dirigir a elites culturais devido às lacunas da sua formação e à ênfase exageradamente pastoral que ele teria impregnado no seu pontificado.

Através do teor filosófico do pensamento e da ação do Papa Francisco, Massimo Borghesi conduz-nos ao olhar complexo, e poliédrico, a partir do qual o atual líder da Igreja católica considera e vive o cristianismo na era da globalização. Esclarece-se, dessa forma, o sentido e a pertinência dos documentos magisteriais, das ações e dos gestos mais significados do atual pontificado, nomeadamente no que diz respeito à tensão entre as diferenças que a unidade não resolve. Na “complexa relação entre unidade e diversidade está o núcleo do pensamento «católico» de Bergoglio” (ibid., p. 27); “O modelo que, a propósito, Bergoglio oferece é dado por uma imagem geométrica que lhe é cara e que volta mais vezes aos seus textos: a imagem do poliedro (…) A diferenciação poliédrica representa bem a ideia da unidade na diferença, do uno de muitas faces” (ibid., p. 162).

Desvanece-se, assim, o preconceito que por vezes paira numa certa opinião pública segundo o qual, contrariamente aos seus predecessores, nomeadamente o reputado teólogo Ratzinger, o atual Papa seria incapaz de se dirigir a elites culturais devido às lacunas da sua formação e à ênfase exageradamente pastoral.

Romano Guardini, que muita influência exerceu sobre o teólogo Joseph Ratzinger, surge como um dos autores mais importantes de Bergoglio, um jesuíta que chegou mesmo a iniciar um projeto de doutoramento centrado na teologia desta figura marcante para os padres da sua geração. “A sua aprofundada leitura das obras de Guardini – especialmente L’Opposizione Polare e La Fine dell’Epoca Moderna – tinha, claramente, produzido os seus frutos: Bergoglio procurava substituir a dialética hegeliana dos opostos antinómicos por aquela que ele próprio definia como «uma mútua interação de realidades» (…) «a tentação acontece sempre quando se procura resolver mal o conflito: “reduzir” a tensão a um equilíbrio instável […] ou anulá-la através da adesão a um dos polos»” (ibid., pp. 167-168). A dialética de Guardini entre pólos opostos que se unem numa tensão permanente permite que Bergoglio atualize conceitos tais como coincidentia oppositorum numa visão de Igreja e do mundo para a qual nem a globalização das sociedades contemporâneas nem a unidade da Igreja anulam as diferenças de uma realidade que se quer poliédrica.

Como todos os jesuítas do seu tempo, Bergoglio manifesta o seu apreço por Gaston Fessard. A leitura de La dialectique des “Exercices spirituels” de saint Ignace de Loyola marcou-o profundamente e, através de Fessard, Bergoglio faz-se próximo do pensamento de um Henri de Lubac ou até mesmo de um Maurice Blondel. “É desta ascendência blondeliana que, através de Fessard, deriva o modelo dialético que Bergoglio repensará depois de modo original. Trata-se de um aspecto importante para compreender a génese do pensamento do autor, um pensamento que muito deve ao blondelismo da escola jesuíta de Lyon, a de Fessard e de Lubac” (ibid., p. 41). A esperança que acredita piamente numa natureza não completamente pura, isto é, jamais separada de Deus e da Sua graça, permite que Bergoglio interaja saudavelmente com todas as esferas políticas e sociais, mesmo com aqueles que se encontram mais afastados das fronteiras eclesiais. Trata-se de algo que Bergoglio sempre fez, não só agora na qualidade de Soberano Pontífice, mas já enquanto sacerdote e bispo de Buenos Aires.

Surge assim o modelo de Pedro Fabro (1506-1546), uma figura querida a todos os amigos da espiritualidade inaciana e da Companhia de Jesus. Enquanto Michel de Certeau nos apresente a figura de Fabro como um modelo de “padre reformado” que nos inspira ainda hoje no nosso mundo secularizado, Bergoglio deixa-se tocar pelo exemplo daquele que foi o primeiro sacerdote jesuíta: “Falando com o padre Spadaro acerca desse homem [Pedro Fabro], Francisco mostra apreciar o «diálogo com todos, também os mais distantes e os adversários; a piedade simples, talvez alguma ingenuidade, a disponibilidade imediata, o seu atento discernimento interior, o facto de ser homem de grandes e fortes decisões e ao mesmo tempo capaz de ser tão, tão doce»” (ibid., pp. 291-292).

Uma leitura importante, parece-me, não só para compreender os gestos e palavras do atual pontificado de Francisco, mas também para se aperceber de como o pensamento de Bergoglio se encontra, apesar de tudo, em continuidade com os grandes teólogos e autores que marcaram a sua geração e a Igreja onde um evento como o Concílio Vaticano II despoletou.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.