O povo cujo fiel amigo são as montanhas

Sou amiga do povo que só confia nas montanhas, e com razão! Sou amiga dos curdos e da causa curda.

Nestas últimas semanas, acompanhámos, com horror, perplexidade e espanto, a inesperada retirada do apoio militar dos EUA ao povo curdo no nordeste da Síria, permitindo a operação militar turca que já gerou mortes inocentes e milhares de deslocados e refugiados.

Ouvimos e assistimos à facilidade com que Trump deixou cair um povo, que era seu aliado há inúmeros anos, sem qualquer tipo de pudor ou remordimento de consciência. Uma aliança que é responsável não só por desmantelar o Estado Islâmico na Síria e no Iraque, mas também pela defesa incondicional e permanente do Curdistão iraquiano, território que permaneceu impenetrável e que acolheu os milhares de refugiados sírios e de deslocados iraquianos (muçulmanos, cristãos e yazidi) que fugiram amedrontados do pesadelo do DAESH no verão de 2014.

Ao longo desta guerra contra o Estado Islâmico, morreram onze mil pershmerga (militares curdos). Não foram só homens. Centenas de mulheres curdas também se juntaram às fileiras, quiseram aprender a usar as armas e tornaram-se pershmerga quando foi preciso dar tudo para defender corajosamente aquilo a que chamam lar, impedindo a entrada dos ‘monstros’ do DAESH nas suas terras.

Conseguiram! O DAESH foi incapaz de se estabelecer em território curdo. O mesmo não o poderão dizer as autoridades e as forças iraquianas e sírias que, com um muito maior poder militar que os pershmerga, foram incapazes de deter a presença do autoproclamado califado dentro das suas fronteiras e territórios, permitindo que o inferno tivesse ali morada.

Combater o DAESH, desmantelá-lo tem impacto direto na segurança do resto do mundo. Esta vitória não pode ser entendida nem ficar circunscrita à sua derrota nos territórios iraquianos ou sírios. Foi este o povo que, no terreno, tornou esta vitória possível, numa batalha que se fez centímetro a centímetro, ruela em ruela, casa a casa. Sem drones nem bombas teleguiadas que os substituíssem.

Exibiam uma dignidade incomum de quem, finalmente, ia pôr cobro a algo que os humilhava enquanto povo, enquanto nação.

Em outubro de 2017, quando começou a ofensiva pela reconquista de Mosul no Iraque, eu estava na estrada que nos levava de Erbil a Dohuk no Curdistão iraquiano, e vi a expressão orgulhosa e sorridente de todos aqueles centenas de jovens peshmerga que constituíam a enorme coluna militar na faixa ao nosso lado.

Exibiam uma dignidade incomum de quem, finalmente, ia pôr cobro a algo que os humilhava enquanto povo, enquanto nação. Dignidade essa que também se revelava no facto de se terem unido, pela primeira vez na sua história, ao exército regular iraquiano – que tantas vezes tinha investido barbaramente contra eles – na operação conjunta que viria a revelar-se vitoriosa.

Fez-me tanta impressão ver todos aqueles homens sorridentes que iam ao encontro da morte, confiantes na derrota que iam impor ao DAESH, que não me contive em lhes acenar, enquanto ultrapassávamos aquela infindável coluna militar, obtendo o V de vitória das suas mãos.

Com razão, há pouco mais de duas semanas, os curdos voltaram a dizer: “Só nas montanhas podemos confiar, elas são os nossos únicos amigos”. Uma verdade que têm sido obrigados a viver repetidamente ao longo da sua história de luta por conquistar o seu direito à autonomia, à liberdade, à autodeterminação e à tão desejada, mas aparentemente impossível, independência. O Curdistão é uma região (também rica em petróleo) repartida por 4 países que negam o direito à existência de um estado independente curdo.

“Mais de 7000 novos refugiados sírios – quase metade deles crianças – fugiram do conflito no nordeste da Síria e chegaram à região do Curdistão no Iraque. Muitos deles são mulheres, crianças e idosos. Quase todos eles percorreram longas distâncias durante a noite, esperando alcançar segurança. Eles chegam em sofrimento físico e psíquico.” Este relato não é do tempo do DAESH. É do tempo de Trump e do Erdogan.

A quase totalidade dos curdos que conheço não apoia e não se revê no grupo armado curdo, o PKK, que atua na Turquia. Estou convicta de que traições como esta beneficiam o crescimento destes grupos radicais armados que a maioria inicialmente rejeita. Não acredito, e a História não me convence do contrário, que seja esta a forma destes grupos armados desistirem. Lembremo-nos do IRA, da ETA. Recordemos como começaram e como, tarde demais, depuseram as armas. Foram soluções políticas e de autonomia que colocaram um ponto final a estas formas inaceitáveis de luta.

Para terminar deixo-vos com dois vídeos e duas personagens destes últimos dias: Trump e uma mãe curda. Sei com qual me identifico.

 

 

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.