O currículo COVID

Não sabemos como vai ser o próximo ano letivo; é provável que seja marcado por mais tempo dos alunos em casa. Ou alunos mais afastados nas salas. Ou menos alunos em cada sala. Seja como for, vamos ter de mexer na estrutura do currículo.

Vivemos tempos muito diferentes. É excessivo comparar com tempos de guerra, que felizmente a maioria de nós nunca viveu, mas são tempos muito diferentes e desafiantes.

Na educação, estamos todos a aprender e a tentar recriar uma realidade que dávamos por adquirida: os filhos saem de casa pela manhã, os professores ensinam e tratam deles, brincam com os colegas e ao fim do dia voltam para casa. Também para os filhos isto era uma rotina não questionada: saíam de casa, aprendiam com os professores, brincavam com os amigos e voltavam para casa onde birravam / brincavam / ignoravam / conversavam com os seus pais (ou ficavam online), variando a ação em função da idade dos filhos e a paciência dos pais.

De repente esta rotina foi interrompida. De forma bruta e abrupta, entre notícias sobre infeções, insuficiências e mortes; angústias quanto aos rendimentos no final do mês; e incertezas dos adultos quanto ao futuro próximo. E em vez de saírem para a escola, brincarem com os amigos e regressarem a casa, os nossos filhos ficaram fechados em casa, a lutar pelo computador e a partilhar connosco todas as horas do dia.

Por todo o mundo, foram suspensas atividades letivas e não letivas presenciais. Um sofismo para “continua tudo igual mas tem de ser à distância”. Felizmente, vivemos hoje em Portugal um ambiente completamente diferente de décadas anteriores, em que o Ministério mandava e as escolas faziam. Felizmente porque ninguém sabe qual a melhor forma de fazer isto. Qual o limite de horas para os alunos estarem online? Como se conjugam os horários de irmãos que têm de usar o mesmo equipamento? O que se faz quanto aos alunos que não têm computador ou internet?

Estas questões não têm resposta única; cada caso é um caso. E não há outra forma de agir que não seja deixar cada escola decidir o que fazer. Curiosamente, isto deixa muitas pessoas nervosas. E se a escola decidir mal? E se não resolver o meu caso da forma que eu acho melhor? De facto é muito mais fácil podermos dizer mal do “ministério” porque “eles” são incompetentes…

A verdade é que neste ecossistema onde todos tentam fazer o melhor que sabem e conseguem temos visto de tudo. Do melhor e do pior. Não é verdade que todos os professores sejam uns heróis. Nem é verdade que as escolas estejam, como um todo, a mostrar que são uma organização social robusta. As imensas diferenças entre professores e entre escolas, que sempre existiram mas estavam disfarçadas na rotina e nas declarações pias de que “faltam meios e formação”, vieram ao de cima de forma muito evidente.

É importante não fingir que somos todos iguais. Não somos. E se há diferenças que são fundamentais e que fazem parte da riqueza da humanidade, há outras que perpetuam ciclos de pobreza e exclusão. Há escolas que não estão a deixar nenhum aluno para trás, mas há outras que estão.

Todos conhecemos dezenas de alunos que estão sem qualquer contacto da escola; todos conhecemos dezenas de alunos que passam horas online a ouvir (como é possível desligar a câmara e ter outra janela do Windows aberta, desconfio que agradecem o regime não presencial porque assim ao menos sempre podem jogar Fortnite enquanto esperam que a “aula” acabe). Mas todos também conhecemos dezenas de alunos que têm professores que foram capazes de, em muito pouco tempo, dominar as plataformas digitais, reinventar a sua planificação, chegar a todos os seus alunos, mesmo os que não têm computador ou internet.

Faço esta distinção porque é importante não fingir que somos todos iguais. Não somos. E se há diferenças que são fundamentais e que fazem parte da riqueza da humanidade, há outras que perpetuam ciclos de pobreza e exclusão. Há escolas que não estão a deixar nenhum aluno para trás, mas há outras que estão. Isto é objetivamente mau. Se fossem só estes dois meses… mas não vão ser.

Não sabemos hoje como vai ser o próximo ano letivo. Mas é muito provável que seja marcado por mais tempo dos alunos em casa. Seja porque podemos ter de voltar à situação de isolamento, seja porque as regras de distanciamento social nos vão obrigar a ter menos pessoas de cada vez nas escolas. E nem é só regressarmos à “escola meio dia” em que metade vai de manhã e a outra metade de tarde. É que, para termos os alunos mais afastados nas salas, vamos ter de ter menos alunos em cada sala. E para ter menos alunos em cada sala, ou temos mais professores por aluno ou cada professor trabalha mais horas.

Mas nenhuma destas opções é viável. Pensem por momentos que diminuímos as turmas de 25 para 15 alunos. Isto implicaria que, para a mesma carga horária curricular presencial, iríamos precisar de mais 10% de horas letivas de docentes. Para o Ministério da Educação, isto significaria um acréscimo anual de 480.000.000€ só para salários. Nos colégios privados, isto significaria aumentar a anuidade aos pais num valor em torno dos 7%. A outra opção seria pedir aos professores que, pelo mesmo salário, trabalhassem mais 5 horas por semana (entre letivas e não letivas).

Assim, só nos resta uma alternativa: reestruturar o currículo. No caso dos alunos mais velhos, a solução poderia passar por ter aulas online e aulas presenciais ou um sistema misto em que o online e o presencial se completam, tornando o processo de aprendizagem menos dependente do contacto presencial na escola. Os alunos do 3.º ciclo e do Secundário são jovens autónomos que provavelmente beneficiam de um sistema mais assente em si do que na escola. (Quanto às necessidades de ferramentas digitais, penso que é hoje pacífico que estas devem passar a fazer parte das rubricas que compõem a ação social escolar).

Ficam-nos dois problemas: o dos alunos mais novos, que necessitam da presença mais constante de um adulto… e o dos alunos das escolas que demonstraram não estar à altura das circunstâncias.

Claro que há uma outra hipótese; deixarmos de ter uma escola longe do mundo 4.0 em que o resto da sociedade vive, tornando o trabalho dos professores mais eficiente (e diferente). Mas isso são contas de outro rosário (para quem o quiser começar a pensar, leia isto: https://www.crescimentosustentavel.org/media/Relatorio%20Reshaping%20Schools_comcapa.pdf)

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.