O Amanhã já começou. A propósito da «Semana Laudato Si’»

Só quem é solidário, quem ama, será capaz de sacrificar as suas ideologias pela realidade que se impõe e renunciar aos interesses mais egoístas em benefício dos mais desprotegidos.

No início do ano, quem contava ter de enfrentar hoje uma pandemia? Quem julgaria, há apenas uns meses atrás, ter de atravessar agora as exigências de uma crise sanitária, económica e social nunca vivida nem imaginada pela nossa geração? No mundo pré-pandemia, levados por um crescimento económico considerável, que esperávamos que continuasse durante umas décadas, não ousámos mudar os nossos estilos de vida. Agora, imersos numa crise sanitária e económica sem precedentes, fomos forçados a parar. Confinados, fomos obrigados a congelar uma economia que há muito sabíamos ser insustentável no longo prazo. É verdade que, já antes da pandemia, temíamos os efeitos das alterações climáticas e das migrações em massa. Mas foi só agora, no pós-pandemia, que experimentámos de certa forma a vulnerabilidade do mundo que nos espera.

A celebração do quinto aniversário da Encíclica Laudato Si’, neste 24 de maio, convida-nos a atravessar este tempo de privação com olhar no futuro. Sem descurar a urgência do que há para fazer no presente, quer ao nível sanitário, quer ao nível económico e social, somos convidados a repensar, quiçá a reconfigurar, os nossos estilos de vida e as estruturas económico-sociais que os sustentam e que deles dependem para subsistir.

Neste contexto, podemos seguir a série “É p’ra amanhã” cujo primeiro episódio passou no domingo passado na SIC. Em cinco episódios, esta produção nacional apresenta algumas iniciativas que visam “construir um futuro mais sustentável.” Seguindo o espírito construtivo e otimista do documentário francês Demain de 2015 (o ano da Laudato Si’), os produtores desta série procuram mostrar alternativas concretas ao nosso modo de vida. Por um lado, os problemas que enfrentamos são apresentados numa ótica que não se fecha nos cenários mais catastrofistas. Por outro lado, as alternativas que nos são dadas a conhecer não se referem apenas ao futuro, já que são postas em prática no presente do nosso país. Assim sendo, mesmo apesar de não concordar com tudo o que lá se diz, creio que devemos agradecer e louvar esta série e as iniciativas por ela relatadas. Pois estas iniciativas comprovam que o Amanhã já começou.

Recordar a Encíclica social de Francisco ajuda-nos a desmistificar, a este propósito, a ideia de um cristianismo supostamente negligente com o cuidado da terra. Muitos ainda são levados a pensar, talvez com um Martin Heidegger, que a tecnocultura do homem moderno, qual ser todo-poderoso, provém da tradição judaico-cristã. Por seu lado, o Papa julga que distorcemos o “mandato de ‘dominar’ a terra (cf. Gn 1, 28) e de a ‘cultivar e guardar’ (cf. Gn 2, 15)” precisamente quando recusámos viver como “criaturas limitadas.” Foi assim que “a relação originariamente harmoniosa entre o ser humano e a natureza se transformou num conflito (cf. Gn 3, 17-19)” (Laudato Si’, §66).

Sendo a terra o lugar onde a vida nos é dada, onde nascemos, onde crescemos, onde somos, a imagem bíblica de um jardineiro frágil promove uma saudável comunhão com a natureza. A paragem forçada que experimentámos recentemente mostrou-nos como a realidade não se reduz a uma mera construção humana. Há limites a essa construção. Somos forçados a adaptar-nos à terra onde existimos. Como dizia o Papa, há cinco anos atrás, “chegou a hora de prestar novamente atenção à realidade com os limites que a mesma impõe e que, por sua vez, constituem a possibilidade dum desenvolvimento humano e social mais saudável e fecundo. Uma apresentação inadequada da antropologia cristã acabou por promover uma conceção errada da relação do ser humano com o mundo. Muitas vezes foi transmitido um sonho prometeico de domínio sobre o mundo, que provocou a impressão de que o cuidado da natureza fosse atividade de fracos” (Laudato Si’, §116).

Por isso, a solidariedade, tão desejada hoje em dia, não é uma beatice qualquer. Mais do que um sentimento romântico estimulado por um humanismo adolescente, a solidariedade é condição do nosso futuro.

Além disso, ao recordar, em plena crise sanitária, este texto fundamental do pontificado de Francisco, somos levados a experienciar o facto de não sermos independentes uns dos outros. O holismo é-nos intrínseco na medida em que a ação de um único indivíduo afeta a vida de todos. Não, não somos ilhas isoladas. Cada pessoa faz parte de nós. Por isso, não devemos pensar que o estilo de vida deva ser escolhido por cada indivíduo sozinho, como se todos os outros ou o resto da sociedade não tivesse nada que ver com as nossas escolhas pessoais. Por mais paradoxal que possa parecer, o uso da máscara, por exemplo, mostra-nos como Francisco tem razão ao dizer que “os outros deixam de ser estranhos” e que “podemos senti-los como parte de um ‘nós’ que construímos juntos” (Laudato Si’, §151). De forma a enfrentarmos o desafio das alterações climáticas, devemos ser “capazes de superar o individualismo”, desenvolvendo “um estilo de vida alternativo” que torne “possível uma mudança relevante na sociedade” (Laudado Si’, §208). Como constatou o Papa na Sexta-feira Santa, falando ao mundo numa praça vazia da presença física de pessoas, mas cheia dos seus corações: “Demo-nos conta de estar no mesmo barco, todos frágeis e desorientados mas ao mesmo tempo importantes e necessários.” É evidente que “não nos salvamos sozinhos.”

Por isso, a solidariedade, tão desejada hoje em dia, não é uma beatice qualquer. Mais do que um sentimento romântico estimulado por um humanismo adolescente, a solidariedade é condição do nosso futuro. E, além disso, ela provém do “nós” que sempre fomos e seremos nesta terra que nos acolhe. Assim, seguindo o Papa Francisco, acreditamos que o Amanhã precisa “de uma nova solidariedade universal” (Laudato Si’, §14). Só quem é solidário, quem ama, será capaz de sacrificar as suas ideologias pela realidade que se impõe e renunciar aos interesses mais egoístas em benefício dos mais desprotegidos. A crise económica que nos espera, já no curto prazo, é também uma ocasião para esta solidariedade crescer e solidificar-se, preparando, assim, o Amanhã de um planeta saturado com os nossos estilos de vida e as formas de produção que os incitam.

Fotografia deJulian Ebert – Unsplash

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.