Natal: a história de um parto

A ausência de violência obstétrica na gravidez e no parto não pode depender da sorte ou do privilégio. É uma questão de direitos humanos, da dignidade das mulheres grávidas e que parem.

Não sou a única mulher a dizer que a maior aventura da minha vida foi a maternidade. Apesar de sempre ter querido ser Mãe, imaginei que o meu caminho de parentalidade passasse exclusivamente pela adoção. Cresci a temer e a rejeitar as ideias da gravidez e do parto. À minha volta, só ouvia relatos terroríficos: gravidezes longas de estase, mal-estar e indisposição; partos violentos e traumáticos, que obrigatoriamente envolviam a manipulação bruta da parturiente “para que o bebé possa sobreviver”. Qual foi a minha surpresa quando as minhas experiências de gestação de parto foram diametralmente opostas.

Sei que concorre para o meu desfecho positivo uma dose enorme de sorte — tive uma gravidez e parto sem intercorrências de maior, e fui para casa com um bebé saudável — e um enorme privilégio, tanto a nível de recursos – financeiros, de educação, com uma boa rede de apoio – como de tempo para me informar. Contudo, a ausência de violência obstétrica na gravidez e no parto não pode depender do encontro feliz entre sorte e privilégio, uma vez que estamos a falar de direitos humanos, universais, radicados na dignidade da pessoa humana das mulheres grávidas e que parem.

Enquanto sociedade, cultivamos que as gravidezes (e os partos) sejam envoltos em mistério. É engraçado que sejamos tão despudorados em tanta coisa, mas tão secretistas quanto ao momento inicial da vida terrena, obrigatório e comum a todas as pessoas. Não fosse a minha formação jurídica e feminista, talvez não tivesse intuído o motivo, nem feito tantas perguntas, nem me chocado tanto com as respostas.

Passei a última década a colecionar estórias de terror de gravidez e parto, agregando detalhes sórdidos que se revelavam entre lágrimas e confissões sussurradas, nos momentos sagrados em que as mulheres revelam a outras a dimensão do seu sofrimento privado, que frequentemente levam para a vida, e que são condicionadas a não partilhar. Outras mulheres recusavam-se mesmo a falar sobre o assunto, com medo de dissuadir outras deste rito de passagem do feminino, envolto em dores e pequenas e grandes agressões — “o melhor é mesmo não pensar nisso porque não há nada que possamos fazer”; “o melhor é que não nos informemos porque está totalmente fora do nosso controlo”. No manto do segredo, por trás das portas higienizadas das maternidades, encontramos mais uma forma de violência: a sociedade condiciona as mulheres a serem coniventes com as próprias violações, porque o parto é um momento que envergonha e que deve ser silenciado.

Confirmam-no os estudos feitos relativamente ao aumento de violência obstétrica em contexto de pandemia, agravados pelo facto de a DGS mais uma vez não ter sido capaz de pôr ordem nas políticas de cada hospital, em desrespeito direto das orientações da Organização Mundial da Saúde quanto ao parto.

A minha experiência é confirmada pelos estudos feitos sobre experiências de parto pela APDMGP (Associação Portuguesa pelos Direitos da Mulher na Gravidez e Parto), que relata que cerca de metade das mulheres não tem a experiência de parto que quer. Confirmam-no os estudos feitos relativamente ao aumento de violência obstétrica em contexto de pandemia, agravados pelo facto de a DGS mais uma vez não ter sido capaz de pôr ordem nas políticas de cada hospital, em desrespeito direto das orientações da Organização Mundial da Saúde quanto ao parto. Confirmam-no quase 10 mil pessoas que assinaram a petição pública pelo fim da violência obstétrica nos blocos de parto dos hospitais portugueses. Confirma-o o movimento #EuViVo, que tem levado às ruas e ao debate público os relatos de violência obstétrica em Portugal, mesmo quando a Ordem dos Médicos emite um parecer que nega e diminui as experiências das mulheres portuguesas, dizendo que o projeto de lei da deputada Cristina Rodrigues que se propõe a criminalizar a violência obstétrica é despropositado e ofensivo, tornando-o um problema de classe, em vez de tentar melhorar as práticas profissionais generalizadas, que vão contra os padrões de cuidado que se têm nos outros países europeus.

Nesta altura do ano, reflito que o catolicismo português, Natal-cêntrico e profundamente mariano, que celebra o nascimento do Deus-menino com presépios, replicados e encenados até à exaustão nas casas, espaços públicos, escolas, e publicidade, retira da natividade o seu momento nuclear: o parto de Maria.

A figura histórica de Maria não nos relata uma mulher estática e passiva, que viveu a gravidez com um marasmo romântico. Fala-nos de uma mulher ativa, móvel, e protagonista da sua gravidez e parto até ao último momento. Tão pouco nos chega o relato de um parto “feito” por José, que assistiu a dócil e impotente Maria; mas de um marido que pôde participar e estar presente (ao contrário de tantos pais que foram impedidos de acompanhar as parceiras neste momento, numa violência às famílias justificada pela pandemia); que escolheu um lugar quente, privado, seguro e sossegado para Jesus nascer. Não foram obrigados a induzir às 40 semanas, nem levados para cesariana porque o parto não ocorreu depois de 12h do início. A Maria não lhe fizeram uma episiotomia, não a amarraram à cama, não lhe limitaram os movimentos, não a impediram de vocalizar; não a algaliaram; não a insultaram; não lhe fizeram toques vaginais sem consentimento; não lhe introduziram medicação intravenosa sem a informar, nem a obrigaram a ter monitorização fetal contínua; não instrumentalizaram o parto porque estava a demorar muito tempo; aposto que não houve manobra de Kristeller nem tração e corte prematuro do cordão umbilical; não tiraram Jesus de Maria para ser lavado e aspirado, pesado e medicado, nem lhe extraíram leite sem consentimento, nem lhe deram “o ponto do marido”.

Maria pariu Jesus sozinha num estábulo, numa metáfora narrativa brilhante do parto como um momento profundamente mamífero e natural. Maria até teve o privilégio de uma rede de apoio (sui generis) no pós-parto, na pessoa dos Reis Magos e daqueles que foram visitar o Menino.

Desejo que todas as mulheres possam ser informadas sobre a sua saúde, e aceder aos melhores cuidados de saúde ginecológica e obstétrica.

É importante com isto sublinhar que não romantizo o parto domiciliar. Tão pouco demonizo analgesia, ou divinizo o parto vaginal em detrimento da cesariana. Sei que a diminuição da anteriormente esmagadora taxa de morte materno-fetal se deve às intervenções médicas que hoje temos para nos socorrer; e que mesmo sem o peso da morte, podemos utilizar estes recursos para ter uma experiência de parto mais confortável e positiva. Acima de tudo, o que exijo absolutamente é que se respeitem as escolhas da mulher grávida e que pare, que a informem e obtenham consentimento antes de todas as intervenções, e que se quebre o tabu acerca da saúde sexual e reprodutiva feminina. Desejo que todas as mulheres possam ser informadas sobre a sua saúde, e aceder aos melhores cuidados de saúde ginecológica e obstétrica. Que possam conhecer histórias de parto positivas, e ansiar pela gravidez e pelo parto como momentos da vida empoderadores, transformadores, femininos e sexuais, que não têm necessariamente de passar por sofrimento, objetificação ou violações. Que as pessoas possam parir, nascer e viver em dignidade e respeito.

Tinha muito mais a dizer, relativamente ao machismo sistémico e à narrativa patriarcal que condena as mulheres ao sofrimento, que lhes retira a agência no parto como um castigo, que tenta tornar a fisiologia do parto suja, e a ausência de cuidados materno-fetais dignos que afeta desproporcionalmente os pobres, as pessoas racializadas, os portadores de deficiência, os queer, e os imigrantes.

Deixo-vos com duas ideias em jeito de conclusão. Por um lado, que não há uma teologia do corpo completa que não passe pela teologia do parto. O cristianismo baseia-se no Amor de Deus que se faz Homem e escolhe nascer Homem – parido – tal como nós. Por outro, a nível secular, não podemos ambicionar estar esclarecidos quanto à sexualidade, de forma cada vez mais precoce, se relegamos para segundo plano os assuntos da saúde reprodutiva feminina.

Este Natal, tragam não só o nascimento de Jesus, mas também o parto de Maria para as vossas mesas; conversem com as mulheres das vossas famílias sobre as suas experiências, e exijam o respeito pela dignidade de todas as pessoas que parem e que nascem, em Portugal e no Mundo.

Fotografia de Patricia Prudente – Unsplash

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.