Nas asas de uma águia verde

O início de ano é marcado por balanços e propósitos, que gosto de traduzir em imagens. Este artigo tem assim a forma de exercício de imaginação. A proposta é que se deixem guiar e façam a vossa própria viagem.

Vivo numa zona rural da zona centro. Quase todos os dias tenho o privilégio de ouvir e ver várias águias a sobrevoar a casa e aldeia onde vivo, bem como observar outra passarada, e também as abelhas… Nestes tempos andamos tão ocupados e absorvidos pelo desafio de sermos sustentáveis e ecológicos, que nem paramos simplesmente para aprender com o equilíbrio admirável da natureza. Devíamos perder-nos mais vezes neste exercício de contemplação onde nos apercebemos de tanta harmonia, organização, cuidado, eficiência, sentido de bem comum, de colaboração, de vida e suporte comunitário. Mas não temos tempo para esses lirismos, logo alguém nos chama para correr para mais uma reunião, onde temos de negociar agendas, apresentar resultados, avaliar indicadores… de sustentabilidade.

Levantemos então voo. Como uma águia que sobrevoa lá do alto para ter melhor campo de visão à procura de alimento, pairando em torno do local onde tem o seu ninho. Dou por mim a pairar sobre esta Terra que nos sustenta, avaliando a sua beleza e também as suas feridas, percebendo como está a nossa Casa. Vou descendo e subindo entre o chão que piso e o céu que a todos nos une, interligando a realidade local (cheia de desafios e projetos a acontecer) com as grandes, lentas e volumosas estratégias globais de desenvolvimento sustentável.

Mas não temos tempo para esses lirismos, logo alguém nos chama para correr para mais uma reunião, onde temos de negociar agendas, apresentar resultados, avaliar indicadores… de sustentabilidade.

À distância, lá do alto, ao deixar-me conduzir simplesmente pelas correntes de ar, invadida por uma grande sensação de Paz e ao mesmo tempo de fragilidade, pequenez e dependência, é bom perceber como tudo converge para um mesmo fim, para um Mundo melhor, para o Bem Comum. Embalada, dou-me conta de como cada vez mais se vai percebendo um grande esforço de respeito pela natureza e pelos valiosos recursos naturais que temos ao nosso dispor. Os cada vez mais frequentes desastres naturais que nos assolam têm despertado consciências e cada vez mais se ouve falar de ecoeficiência, em tudo e para tudo. Também de crescimento verde, de tecnologias de precisão, de agricultura e florestas climaticamente inteligentes, economia circular. Tudo boas ondas, mas… porque é que continuamos a ter tantas diferenças entre territórios, tanta fragmentação, tantas desigualdades, tanta imprevisibilidade? Talvez porque não estejamos a cuidar ao mesmo tempo das pessoas, não relacionamos as coisas… como se não estivessem intimamente dependentes! Cuidar das pessoas é mais exigente, põe-nos em relação, implica cedências, faz-nos sair de nós. E também porque não estamos em relação com a própria natureza, se estivéssemos, cuidaríamos.

Faço um voo picado para me aproximar de um rato de que me apercebo a passar lá em baixo. A minha ecoeficiência alerta-me a tempo de não deixar escapar este alimento do qual dependo. Nos últimos tempos, pelas alterações no uso e ocupação do território, tenho apurado em mim a suficiência, o viver em equilíbrio com os recursos disponíveis. Cada vez se fala mais de suficiência, no sentido de não viver a crédito, acima do que necessito e das possibilidades do planeta, esbanjando recursos que pertencem a todos e sobretudo privando muitos milhões de pessoas de aceder às condições mínimas indispensáveis a uma vida digna. Os desafios ambientais de hoje exigem novos comportamentos, novas formas de organização, novos princípios, que já vão germinando e crescendo com as pessoas e lentamente influenciando as políticas e modelos económicos e sociais, pelo menos nas palavras.

Desço de novo e à medida que aterro, vou embatendo em ventos contrários, em vendavais e tempestades, que nos fazem perder a direção e nos desviam desta relação livre, intrínseca e simples entre a parte e o todo

Desço de novo e à medida que aterro, vou embatendo em ventos contrários, em vendavais e tempestades, que nos fazem perder a direção e nos desviam desta relação livre, intrínseca e simples entre a parte e o todo. Aterro por uns instantes no pinheiro bravo onde fiz o meu ninho. Nos últimos anos não tem sido fácil encontrar um pinhal onde sobreviver, na região muitos não escaparam aos fogos. As pessoas foram recomeçando as suas vidas com resiliência (outra palavra marco), mas tarda uma resposta acerca do futuro destas zonas. São realidades complexas e desafiadoras, que vão ficando na sombra de estratégias políticas viradas para regiões e fileiras mais competitivas e promotoras de crescimento económico, através de soluções inovadoras… onde ficarão as pessoas no meio de tudo isto? A maioria pensará que beneficiarão do aumento de riqueza, mas a realidade mostra que não, vão-se agravando as desigualdades sociais e a espiral de pobreza que provocam. Quem à partida já está em desvantagem, é quem mais sofre com estes desastres e ao mesmo tempo é quem tem mais dificuldade em superar a realidade dura em que vive.

Por ali fico parada uns instantes. É fácil sentir a azáfama na aldeia, onde de há uns anos para cá se voltou a produzir hortícolas, graças a um projeto de produção e consumo local.  Hoje têm a visita de uma escola e as crianças estão alegres a esgravatar a terra. Têm vindo com mais regularidade, agora que as escolas do concelho têm um protocolo com os agricultores da região para o consumo de produtos locais nas refeições escolares. Levanto de novo voo, e recordo que no entanto este processo está em risco porque querem fechar a escola da aldeia e também por causa das leis das compras públicas, que acabam por excluir estes agricultores familiares. Fico a pairar e a olhar a aldeia e a beleza da terra cuidada, salpicada de pessoas. Porque será tão difícil conseguir de uma vez por todas políticas que têm por base a Comunidade e as pessoas?

Já é noite, fica-me a urgência de contribuir este ano para um mundo mais articulado e ligado, percebendo com mais clareza as suas fragilidades e também as potencialidades. Para já ficam os votos de um Bom Ano, cheio de bons momentos de paragem e colaboração em conjunto na natureza, que tanto nos pode inspirar e ensinar!

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.