Menos justiça e mais exigência

Talvez se possa dizer que entre ontem e hoje a natureza não mudou. Mas, seja por via da mediatização, seja por via de uma nova hierarquia de valores, há algo de diferente na justiça e na leitura que reservamos ao seu papel na sociedade.

A centralidade da justiça penal – dos temas e dos casos da justiça – na agenda pública (hoje dir-se-á mediática), perpassa os tempos, as gerações e é, como dizem as bibliotecas, «dos livros». Não é de hoje, não nos menoriza face aos que nos precederam e é até (ainda) expressão de uma sociedade que, apesar de tudo, não está amorfa e se sobressalta com o desrespeito por bens e valores essenciais, como a vida, o património honesto, a retidão de procedimentos.

Se ontem tivemos a Dona Branca ou o Alves dos Reis – já para não falar do regicídio em 1908 ou da morte de um Primeiro-Ministro em 1980 – hoje temos operações e casos de nome sugestivo, como as operações «Marquês», «Monte Branco» ou «Furacão», os casos dos «Vistos Gold» ou o «Face Oculta», entre outros (muitos outros). E se não temos história recente de homicídios de chefes de Estado ou de Governo, nem por isso estamos a salvo de casos de Estado, que envolvam armas e figuras proeminentes que nos governaram. E deixo de fora – porque de um «outro» mundo – os casos apaixonantes que envolvem os clubes de futebol e os seus protagonistas, mais ou menos formais.

Talvez se possa dizer que entre ontem e hoje a natureza não mudou. Sim, talvez se possa dizer. Mas há algo de novo nos «nossos» casos que não se experimentara nos de outrora. Seja por via da mediatização (aqui incluo os novos media, trazidos pelas redes sociais) seja por via de uma nova hierarquia de valores na sociedade (ensaio já uma explicação), há algo de diferente na justiça e na leitura que reservamos ao seu papel na sociedade.

Seja por via da mediatização (aqui incluo os novos media, trazidos pelas redes sociais) seja por via de uma nova hierarquia de valores na sociedade (ensaio já uma explicação), há algo de diferente na justiça e na leitura que reservamos ao seu papel na sociedade.

Há, desde logo, uma sobrevalorização – diria, quase sufocante – dos termos jurídicos, do seu lado eufemístico e até presunçoso. Em qualquer informação sobre realidades simples e universais (no sentido de populares), usa-se e abusa-se de termos como a «constituição de arguido», a «presunção de inocência», o «trânsito em julgado», a «suspensão provisória do processo», as «injunções», o «segredo de justiça», a «prescrição», o «processo penal» e por aí fora. E nessa sobrevalorização mora, depois, a desproporcionada autoridade dos juristas na compreensão de realidades que dizem respeito a todos e que todos, no essencial, compreendem (ou compreenderiam, na ausência desses termos pomposos).

Não é inócua, e porventura nem inocente, essa linguagem exacerbadamente técnica – ela tende a refrear juízos de censura social, tende a disfarçar «culpas» e tende a promover a reabilitação de responsáveis que a justiça não pôde condenar, ou escolheu legitimamente não o fazer.

À linguagem de «casta» associa-se, depois, uma instrumentalização generalizada da justiça, muito promovida pelos sectores mais relevantes da sociedade, como são os «mundos» (para usar uma expressão popular, mas ainda assim fiel) da política e da economia, e de onde provêm muitos dos protagonistas (ia dizer «arguidos», mas consegui evitar) a braços com a justiça.

Ainda vamos conhecendo a distinção entre censura política e crime penal. Ou entre desrespeito pela concorrência e fraude ou branqueamento. Ou até entre incumprimento e burla. Mas, cada vez mais, se remete à justiça penal o exclusivo da censura que interessa e que desqualifica, desvalorizando ou confundindo outras censuras que outrora interessavam ou desqualificavam.

Hoje uma folha penal limpa é tudo quanto qualquer um (pensemos num político ou gestor de topo) pretende, pouco interessando se, apesar dela, outras folhas se conspurcaram. Onde antes a revelação de um tratamento de favor ou de uma chico-espertice (cá está a linguagem que todos percebem) interrompia uma carreira política, hoje ela segue vigorosa e escudada no argumento de que não houve qualquer processo ou condenação pelos tribunais. Ou onde antes um lugar de administrador ou mesmo regulador não era compatível com casos de gestão com resultados ruinosos, hoje não há abalo que não se suporte em súbitas faltas de memória, desconhecimento e «segredos profissionais».

A judicialização da política, da economia, da vida em geral – é genuinamente este o fenómeno – tem o terrível efeito de nivelar a exigência social pela bitola rigorosa e naturalmente garantística (não consigo evitar o «juridiquês») da justiça penal. Mas uma sociedade saudável não desqualifica os valores da honestidade, da verdade, da retidão de procedimentos, que nem sempre carecem da chancela da justiça penal e do «trânsito em julgado» (nem tudo o que está errado – tantas vezes profundamente errado – é crime).

À justiça o que é da justiça. Ou «menos» justiça e mais exigência. Talvez deva ser este o mote.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.