A liberdade de escolher o que não escolheríamos

A ideia de que podemos, em qualquer momento, criar-nos, “ser o que queremos”, bastando para isso decidir, é simplesmente falsa. E perigosa.

Li recentemente um artigo em que a alguém defendia que a cultura do nosso tempo tem dificuldade em aceitar que uma grande porção das nossas vidas corresponde a coisas que nos são “dadas” e não a coisas que são “escolhidas”. Esta dificuldade vem de uma outra dificuldade anterior, mais funda, que consiste em entender que ser livre é ter a capacidade de se auto-determinar, de escolher tudo segundo o seu arbítrio individual. Esta ideia não parece falsa. Mas precisa de qualificações. A margem de assuntos em relação aos quais a nossa escolha livre pode ser exercida é talvez mais modesta do que aquilo que supomos: não escolhemos a família em que nascemos, ou o país ou a cidade. Por muito eloquentes que sejamos, nenhum argumento nosso convenceria ninguém a deixar-nos escolher o dia em que nascemos, ou o número de pernas ou estômagos no nosso corpo. Não escolhemos uma quantidade muito relevante das pessoas com quem nos cruzamos na nossa vida, e também não escolhemos os nossos talentos naturais. A lista poderia continuar até se tornar entediante. Em última análise, trata-se de reconhecer a natureza dada da própria existência.

Ao contrário, contudo, do que parece a ideia dominante, a dimensão não escolhida das nossas vidas não tem necessariamente de nos apoquentar. Não será isso que nos impede de ser livres. O simples facto é que não somos nunca mais do que co-autores das nossas vidas e das nossas identidades. Como tal, não somos (só) o que queremos ser, não vivemos (apenas) o que e como queremos viver.

Diria que a liberdade consiste mais em compreender que entre o que nos é dado e a forma como aceitamos (ou não aceitamos) isso que nos é dado existe um espaço de manobra que é só nosso, do que em simplesmente presumir que tudo pode ser objecto de escolha. Um exemplo pouco polémico: não escolho gostar de chocolate – aconteceu-me. Mas escolho a rédea que tem o meu gosto por chocolate, escolho o que faço ou não faço em nome desse gosto, e posso até escolher simplesmente ignorá-lo. Outro exemplo: não escolho adoecer, mas posso escolher como reagir à doença, como vivê-la, o que fazer para a tentar curar, etc.

Aceitar o dado não é simplesmente submeter-se ao fado, ao que vier, reduzindo-se a uma sinistra insignificância. Mas implica uma dose séria e hoje porventura pouco convencional de realismo e de atenção, sobretudo porque os nossos dias são povoados por dezenas de escolhas, mais e menos relevantes – na maioria das vezes, menos –, que podem alimentar a ilusão da nossa própria omnipotência. Que o poder de decisão é bom em si ensinam-nos diariamente os grandes slogans publicitários que nos querem fazer escolher livremente os seus produtos que anunciam. Liberdade é liberdade de escolha e liberdade de escolha é liberdade de consumo. E esta lógica entranha-se-nos e contamina até a nossa vida espiritual. Mas a ideia de que podemos, em qualquer momento, criar-nos, “ser o que queremos”, bastando para isso decidir, é simplesmente falsa. E perigosa. Eis duas razões para isso:

Em primeiro lugar, este credo estilhaça-se sem remédio em face da tragédia, por exemplo, quando nos acontece precisamente aquilo que não queríamos e que nunca teríamos escolhido. Compreender o sofrimento como um dado, e não como uma qualquer “falha no sistema” que parece deixar um rasto de absurdo por tudo o resto, é talvez o primeiro passo para compreender como aí mesmo nos pode ser oferecida uma oportunidade para nos identificarmos com Aquele que tudo sofreu porque nos amava.

Em segundo lugar, o tremendo peso que colocamos sobre os nossos ombros quando nos julgamos criadores de nós próprios, autores exclusivos da nossa identidade, implica também que o valor dessa identidade, ou seja, o valor da nossa vida, depende dessas decisões e do seu sucesso, eventualmente à luz dos padrões de sucesso de uma determinada cultura. Ao contrário, é quando reconhecemos que fomos criados (e bem criados) que podemos também reconhecer que o nosso valor não corresponde à pontuação que obtemos no jogo-vida; que, por exemplo, o meu valor enquanto mulher não depende da minha capacidade de encontrar marido, conciliar uma vida profissional de topo com a garantia de tempo de qualidade com esse marido e os filhos, com a fidelidade a uma determinada dieta saudável e trendy com idas ao ginásio ou (ainda melhor) corridas matinais pela cidade, com a manutenção de um determinado peso, cor e forma de cabelo e ausência de sinais de envelhecimento. Compreender isto é compreender que o meu valor é o valor de uma criatura amada por Deus, independentemente (e às vezes apesar) dos meus méritos. Será aí que a verdadeira liberdade se poderá enraizar.

A mentalidade da nossa cultura diariamente alimenta a obsessão com a escolha individual, muitas vezes à custa da rejeição daquilo que foi nos foi dado, precisamente por não corresponder a uma decisão própria. Julga-se, habitualmente, que ter limites e condições é mau, e que a escolha, por si, é boa. Mas cair nesta lógica impede-nos de entender, verdadeiramente, aquilo que Santo Inácio de Loyola postula na abertura dos Exercícios Espirituais, e que é, justamente, um dos maiores convites à liberdade humana jamais feitos: «O homem é criado para louvar, prestar reverência e servir a Deus nosso Senhor e, mediante isto, salvar a sua alma; e as outras coisas sobre a face da terra são criadas para o homem, para que o ajudem a conseguir o fim para que é criado. Donde se segue que o homem tanto há-de usar delas quanto o ajudam para o seu fim, e tanto deve deixar-se delas, quanto disso o impedem.»

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.