Igrejas: de espaços de oração a galerias de arte…

A igreja não é um museu, é o contrário do museu. Tem de facto conteúdo artístico, mas é em primeiro lugar um espaço de culto vivo e aberto, de reunião e encontro da comunidade: a ecclesia.

A medida já conta com alguns anos, todavia só o mês passado me confrontei com a situação de ter de pagar para entrar na Sé de Braga*. Confesso o meu escândalo e resistência. Como é possível cobrar-se a um leigo um bilhete para entrar naquele que é (também) o seu espaço de oração? Naquele momento, apercebi-me da transformação que uma decisão aparentemente inofensiva provocara: que não era mais num templo de oração, historicamente basilar para aquela comunidade cristã, em que eu entrava. As paredes e portas milenares que outrora serviam e acolhiam uma Igreja viva, feita não de peças valiosas mas de pessoas, eram agora usados para, sobretudo, resguardar um conjunto de imagens e objectos que pouco a pouco iam perdendo o seu peso e simbolismo concretos.

Achar que uma igreja é, acima de tudo, um edifício ou colocar o edifício à frente das pessoas é um erro crasso e perigoso, revelador de uma confusão clara entre meios e fins. Fica a interrogação: diante do declínio da presença da religião na nossa sociedade, estarão as catedrais portuguesas a converterem-se em museus ou repositórios de memória? Estará a Igreja a baixar os braços perante o novo paradigma social?

As dioceses alegam falta de dinheiro para preservarem o seu património histórico e cultural. Mas será a limitação da entrada livre das pessoas a medida adequada e aquela que melhor reflecte a identidade, o carisma e o fim próprio da Igreja? Não se trata aqui de discutir o valor monetário, mas sobretudo o princípio (e respetivas consequências) que esta medida implica. Não estarão as autoridades eclesiásticas a viver uma séria crise de identidade? Não será esta medida uma traição à razão primeira pela qual estas igrejas foram construídas?

Parecem-me evidentes os sinais de que a Igreja vive um período de crise e que precisa de redescobrir com urgência o seu papel na vida da polis (isto é, no espaço público constituído pela política, governo, lei e cultura). Quer a arte, quer a religião têm um papel próprio na construção deste espaço que não pode, nem deve reduzir-se à esfera meramente particular e/ou privada. E isto não representa uma ameaça ao princípio de um Estado laico. É bom relembrar que a laicidade representa uma separação entre o Estado e a Igreja. E não entre Estado e religião ou fé. Uma coisa é a separação destas instituições e a não interferência entre os poderes religioso e governativo, outra é a exclusão da religião e das experiências de fé da vida da polis e dos espaços públicos.

A religião é olhada com desconfiança e até mesmo como ameaça, como algo que deve ser mantido na esfera particular, cada vez mais individualizada e privativa, sem qualquer influência na política e cultura de um país.

Vivemos numa sociedade que entende cada vez mais a importância da arte e reclama do Estado a necessidade de criar condições para a proteção e promoção da arte. Contudo, o mesmo não acontece no que diz respeito ao domínio da fé. A religião é olhada com desconfiança e até mesmo como ameaça, como algo que deve ser mantido na esfera particular, cada vez mais individualizada e privativa, sem qualquer influência na política e cultura de um país. É vista, por vezes, inclusive com uma certa sobranceria: quando a razão religiosa não coincide com a razão da “maioria” (ou a “razão secular” como refere o filósofo Charles Taylor) esta é rapidamente confundida com fundamentalismo, retratada como supérflua e/ou atávica.

Parece acreditar-se hoje que a vida da polis só pode funcionar devida e coerentemente se esvaziada de Deus, ou sem qualquer referência a Deus. Veja-se o exemplo extremo da França, onde as pessoas não podem usar o véu nos espaços públicos ou dispor de uma cruz nos lugares de trabalho. Ou recorde-se a reportagem do Jornal de Notícias “Os portugueses e a religião” de 4 de agosto, onde a maioria dos portugueses discorda da interferência da Igreja em assuntos mundanos e acha que esta deve restringir-se a questões apenas do foro religioso. Mas que questões são estas? Parece agir-se como que se a ordem do transcendente fosse incompatível com a realidade material. Reduzir a Igreja à administração dos sacramentos seria uma traição ao Evangelho e à tradição não só religiosa mas também cultural que todos, crentes ou não, herdámos.

A religião deve ser reconhecida não como um oponente à estabilidade democrática ou a uma sociedade plural, mas como um interlocutor. No entanto, para a Igreja ser ouvida como tal, é crucial que perceba o papel único e insubstituível que terá de assumir numa sociedade hoje diferente, cada vez mais plural, não só do ponto de vista teológico mas também moral.

A religião deve ser reconhecida não como um oponente à estabilidade democrática ou a uma sociedade plural, mas como um interlocutor. No entanto, para a Igreja ser ouvida como tal, é crucial que perceba o papel único e insubstituível que terá de assumir numa sociedade hoje diferente, cada vez mais plural, não só do ponto de vista teológico mas também moral. E este espaço crescentemente diversificado, onde as possibilidades de busca de sentido são várias e estão cada vez mais ao alcance de todos, não constitui uma ameaça à fé. Certamente haverá riscos e coisas que mudarão. Aliás, já estão a mudar: como o declínio da participação em celebrações religiosas e, a médio prazo, uma alteração inevitável no que diz respeito à matriz religioso-cultural ou às experiências de fé do nosso país. Mas se não for assim, qual a alternativa?

Cada vez mais me convenço que esta “Igreja em saída”, de que fala o Papa Francisco, é uma Igreja que precisa de aceitar que não vive mais nos centros (de poder) da vida da polis, e precisa reconhecer que esta saída é a sua própria oportunidade de regeneração para, a partir das margens, repensar o seu lugar ou papel na construção de um espaço público mais justo e solidário. Convém, para isso, não esquecer: a igreja não é um museu, é o contrário do museu. Tem de facto conteúdo artístico, mas é em primeiro lugar um espaço de culto vivo e aberto, de reunião e encontro da comunidade: a ecclesia.

 

* O que digo aqui acerca da Sé de Braga é fruto de uma experiência concreta e é referido a título de exemplo, dado que o mesmo poderia ser dito a propósito das Catedrais do Porto, Évora, Faro, entre outras.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.