Humanidade – o tecido de que somos feitos

Só aceitando mergulhar na experiência de tentar olhar o outro de um lugar despido de preconceitos, dogmas, verdades absolutas, lugares comuns…vestindo apenas a nossa Humanidade… talvez aí que consigamos encontrar o verdadeiro rosto de Deus.

As horas das refeições cá por casa dão para tudo! Há dias em que ninguém se ouve, porque todos querem contar as suas histórias e a mãe não tem curso avançado de moderadora. Outros, em que o cansaço nos tira a tolerância, os nervos ficam à flor da pele, e o jantar se despacha em menos de nada, para cada um ir à sua vida. E depois há dias em que nos rimos das piadas uns dos outros e de nós próprios. E dias em que falamos do mundo, com vontade de por ali ficar pela noite dentro.

E foi num destes dias que a minha filha adolescente chegou da escola contando que, a propósito da Semana da Saúde Mental na escola, se deu voz ao tema da criminalidade e do racismo. Haviam assistido a um vídeo onde um rapaz negro morria às mãos de um rapaz neonazi, e discutiam-se as possíveis consequências desse ato. Alguém terá levantado o tema da prisão e, pela descrição, as opiniões divergiam: pelo que ela contava, e já com juízo de mãe, umas mais dogmáticas e categóricas, outras mais abertas e interpelativas, mas em comum, a convicção da certeza de cada um.

Revisitei-me na idade dela e agradeci secretamente o tom intenso, apaixonado e intransigente com que relatava os acontecimentos e expunha as suas próprias certezas. Sinal de que algo a movia. Ponto de partida. Ensaio da construção de uma identidade.

Depois foi a minha vez. Sou uma mãe chata típica. Estou sempre a pregar sobre comer bem, dormir bem, fazer exercício … tenho um discurso engatilhado sobre cada um desses temas – e muitos mais – e duvido que na maior parte das vezes me estejam a ouvir à segunda ou terceira vez que os repito. Mas não desisto, e todos os dias me questiono se haverá uma melhor forma de passar mensagens importantes, para que os meus filhos as integrem com um sentido acrescido.

Este princípio, de que só na presença do outro me confronto com a minha própria história e a consigo trabalhar, será definitivamente uma das bases para o eventual sucesso no momento da reinserção.

Numa conversa recente com uma amiga, guarda prisional numa prisão norueguesa, reconhecia, pelo que contava, como as prisões na Noruega são assumidamente locais de inserção. Lugar onde, privados de uma vida em sociedade, aqueles homens e mulheres não são, intencionalmente, privados de uma vida em comunidade. Com regras bem definidas, estas pessoas, que num determinado momento da sua vida terão cometido um erro fatal (partindo do princípio que não estamos a falar de pessoas injustamente acusadas), habitam espaços dignos e é-lhes permitido comunicar e interagir, sob vigilância, com os coabitantes das unidades habitacionais onde foram colocadas. Este princípio, de que só na presença do outro me confronto com a minha própria história e a consigo trabalhar, será definitivamente uma das bases para o eventual sucesso no momento da reinserção. Admiro ainda mais esta sociedade por assumirem e porem em prática este pensamento humanista e visionário!

Anda filha, quero mostrar-te um filme que vi quando tinha 18 anos e que foi muito marcante na minha vida. Poderá fazer-te sentido depois desta nossa conversa. Ou talvez não, mas gostava que visses. Como sempre, teve que haver negociação. Mas depois de um curto preâmbulo em forma de vídeo da banda favorita, instalámo-nos encostadas uma à outra prontas para as intensas duas horas que se seguiriam.

E revivi com comoção a epifania de há quase 30 anos atrás. Um homem, acusado de um crime hediondo, é colocado no corredor da morte num estado norte americano. Duas famílias, destroçadas para o resto da vida, que procuram a justiça. Uma mulher que decide olhar para TODOS com olhos de amor, de compaixão, de respeito pelo ser humano na sua mais íntima e verdadeira essência. Que se põe ombro com ombro, deixando o juízo à margem. E acompanha na dor. E escuta ativamente. E acolhe as vulnerabilidades de cada um. Uma mulher que, não compreendendo os atos, se foca em ajudar este homem a revestir-se da dignidade que lhe pertence, naqueles que serão os últimos dias da sua vida na terra. Não vejo maior bondade!

Um filme neutro e ao mesmo tempo tão implicado. Implicado na causa da humanidade. No tecido de que somos feitos. Em “Dead Man Walking” de Tim Robbins, somos confrontados com a nossa forma de Ser Humanidade, sem lições ou moralismos. Ele finta-nos as emoções. Antecipa-nos os pensamentos. Dá-nos a volta ao coração.

Na minha perspetiva, só aceitando mergulhar nessa experiência de tentar olhar o outro de um lugar despido de preconceitos, de dogmas, de verdades absolutas, de certezas inabaláveis, de lugares comuns…vestindo apenas a nossa Humanidade… será talvez aí que consigamos encontrar o verdadeiro rosto de Deus.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.