Histórias da Escola: Se esta rua fosse minha – parte III

A terceira parte de um projeto concebido por um grupo de crianças do 6.º ano e dos seus professores, relacionando aulas e a vida inserida na comunidade.

“E ainda há mais para contar…”

Foi assim que terminou a história anterior e é este o mote para continuar a descrever o projeto salientando a relação intrínseca que se estabeleceu entre a realidade e o desenvolvimento das aprendizagens transformadoras.

Como já foi referido nos textos anteriores, trata-se de um projeto concebido por um grupo de crianças do 6.º ano e dos seus professores, tendo como intenção pedagógica a interpretação do mundo à luz do conhecimento e das experiências pessoais enquanto elementos comprometidos com a comunidade. Assim, os estudantes, enquadrados no ambiente de aprendizagem escolar, teriam oportunidade para observar o local onde cada um vive e identificar as  condições que lhes permitissem compreender se as ruas eram promotoras da saúde, protetoras do ambiente e amigas das crianças.

Este texto pretende mostrar como há imprevistos que vão afetar o projeto, vão dirigi-lo para caminhos não planeados mas que não podem ser evitados. Mais uma vez se mostra como a cidadania está presente nos processos de aprendizagem, como os abraça e garante a construção de um conhecimento transformador.

Para que se compreendesse se as ruas eram amigas das crianças procuraram-se espaços seguros em que fosse possível brincar e fazer desporto. A Educação Física foi a disciplina central nesta parte do projeto tendo sido organizadas aulas nos jardins e nos campos de jogos dos bairros onde viviam os alunos. Pretendia-se também que os próprios estudantes fossem capazes de organizar torneios desportivos com o apoio das famílias e dos amigos. Nesses dias em que os ringues e pátios do bairro eram assumidos como salas de aula, as janelas dos prédios enchiam-se de famílias acenando, fazendo comentários, gritando o nome dos alunos.

Numa das vezes, a padaria junto do campo de jogos ofereceu um saco de pão a sair do forno a todos os que jogaram.

Ir ao bairro com os professores e usar os espaços de recreio tornou-se notícia, motivo de festa. No entanto, a festa perdeu brilho quando um dos estudantes mostrou como se encontravam degradados os balneários do campo de treino: muito sujos, paredes estragadas, torneiras soltas e, espalhadas pelo chão, seringas, agulhas, cacos de vidro…

Acompanhámos o trilho das seringas nas traseiras dos prédios e nas zonas mais isoladas, de relva alta, não cuidada. Tiraram-se fotografias e começaram-se a contar as histórias das pessoas que frequentavam aqueles locais.

Essas histórias foram levadas para a sala de aula como segredos do bairro: quem são os toxicodependentes, onde e quando se encontram, o que fazem, como são tratados, quem os ajuda. As crianças repetiram o que ouviram dos adultos, quase todos referindo-se à inevitabilidade das situações e ao isolamento social em que eram deixados. Falaram das suas experiências familiares, do medo e da dor que todos sentiam e começaram a questionar. As perguntas foram muitas e sem encontrarem respostas rápidas que os contentassem, concordaram que precisavam de aprofundar os seus conhecimentos sobre a problemática da toxicodependência.

Todos se transformaram através desta experiência: alunos e professores. Num certo momento, sentiu-se a esperança de que é possível mudar, se não for o mundo, pelo menos a nossa rua.

Mais uma vez recorreram a amigos, da escola e da turma, que facilitaram o acesso ao conhecimento e fomentaram o debate e a reflexão:

– a turma, dividida em pequenos grupos, fez uma pesquisa em vários suportes sobre a toxicodependência e, em grande grupo, apresentou e debateu os resultados;

– os alunos da Universidade do Minho, de um curso de mestrado em Educação, concordaram em fazer o seu estágio com a turma e desenvolveram um programa sobre as causas e os efeitos da dependência de aditivos, realizando várias atividades experimentais;

– a Cruz Vermelha Portuguesa também apresentou aos alunos vários programas para a prevenção e tratamento da toxicodependência, refletindo sobre a forma como socialmente essas pessoas são encaradas, evitadas e abandonadas e quais as instituições a quem se podia pedir ajuda;

– a enfermeira escolar realizou uma sessão-síntese em que os estudantes mostraram o que tinham aprendido e de que forma poderiam levar essa informação às suas famílias.

Os alunos ficaram satisfeitos quando a enfermeira se comprometeu em debater no seu grupo de trabalho, no Centro de Saúde, as formas de apoiar os toxicodependentes do bairro, tendo apresentado várias vias de ação e referindo que voltaria à turma para dar conta do que iria ser feito.

Esta temática foi muito difícil de desenvolver apesar de ser conteúdo da disciplina de Ciências Naturais. Foi difícil, não pela complexidade dos conteúdos, mas porque tocou na realidade de muitos alunos. A maioria conhecia não só as pessoas do bairro que enfrentavam o problema da toxicodependência mas, também, outros casos graves associados ao alcoolismo ou ao tabagismo. Ao longo das aulas, passou-se do medo e do desprezo para a compreensão.

Nos momentos avaliativos desta fase do projeto todos os alunos concordaram que tinham mudado a sua opinião, concluindo que a toxicodependência era um problema social a que ninguém podia ficar indiferente, existindo instituições e pessoas a quem se devia recorrer.

Todos se transformaram através desta experiência: alunos e professores. Num certo momento, sentiu-se a esperança de que é possível mudar, se não for o mundo, pelo menos a nossa rua.

Subitamente, a ideia das ruas amigas das crianças deixou de ser romântica e passou a integrar a dimensão da fragilidade da condição humana – proteger a criança é cuidar de todos e não apenas da criança.

Uma nota final para a importância dos parceiros, dos amigos da escola que estão disponíveis para trazerem para as salas de aula os seus conhecimentos especializados e as suas experiências profissionais e que, pela sua ação amorosa, permitem a construção de uma real comunidade de aprendizagem.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.