Figuras menores

A fiscalização escrupulosa da atuação de um Governo com poderes acrescidos sobre uma população é precisamente o que uma oposição patriótica deve fazer. E senão nessa altura, quando?

Os tempos de emergência têm a vantagem de mostrar com assinalável crueza o caráter de certos notáveis. Personagens políticas que em períodos de morna normalidade se limitavam ao discurso fluente em língua de pau, com o acidental deslize prontamente corrigido, desembaraçam-se agora da máscara e revelam o que antes apenas se vislumbrava. Para além do cumprimento apertado de regras sanitárias, a pandemia impõe uma atenção e vigilância acrescidas à política.

Após as últimas eleições legislativas, Ferro Rodrigues decidiu abandonar a placidez batráquia com que presidia à Assembleia da República (AR). Talvez agastado pelo excessivo trabalho das funções quando comparado com a sinecura em Paris ou os afazeres da bancada parlamentar, Ferro, lá do alto, dá réplicas aos deputados, comenta o vocabulário utilizado por alguns e não se coíbe do ocasional ralhete paternalista. O que não deixa de surpreender vindo de alguém que (também) ficou conhecido pelo apreço escatológico que tem pelo segredo de justiça…

Desprovido da gravitas, sentido de Estado ou da elegância que os seus predecessores mostraram, Ferro Rodrigues tem alternado entre comportar-se como um mestre-escola e um chefe de fação. Para segunda figura do Estado, exigia-se muito melhor. E de um político experiente que não demonstrasse tanta ingenuidade perante a impertinência de aventureiros políticos. A prazo, esta inabilidade pode sair bem mais cara ao país do que os pecadilhos de quem não tem vocação para dirigir a AR.

Ingénua e despropositadamente, Ferro transforma Ventura numa vítima, o que este sempre quis, pois agora já não interessa o que diz, mas apenas que já não o deixam falar – e isso só por si gera simpatias.

Não deveria ser necessário explicar a Ferro Rodrigues que os deputados foram escolhidos por vontade expressa dos portugueses. E por mais disparatadas, populistas e demagógicas que se mostrem as “ideias” do deputado Ventura, o certo é que foi eleito dizendo o mesmo que agora continua a debitar no plenário.

É aflitivo assistir à facilidade com que Ferro cede ao mais básico dos truques: Ventura profere umas tiradas atoleimadas, o Presidente da AR replica ou aplica uma reprimenda – na sua versão mestre-escola – e Ventura, esfregando as mãos, brada que lhe estão a coartar a voz e que está a ser tratado de forma desigual. Ingénua e despropositadamente, Ferro transforma Ventura numa vítima, o que este sempre quis, pois agora já não interessa o que diz, mas apenas que já não o deixam falar – e isso só por si gera simpatias. E o deputado vai esperando que “cá fora” a ideia de “se não o deixam falar é porque ele está a dizer algo incómodo e importante” faça escola e o eleve nas sondagens. Vendo as mais recentes, a estratégia tem sido eficaz.

Como se não bastasse, toda esta farsa leva a que gente estimável tenha de desempenhar a desagradável tarefa de defender a liberdade do deputado Ventura. Pois como bem sabe quem o faz – e também o deveria saber o Presidente da AR –, a liberdade de expressão não existe para quem pensa como nós, mas justamente para os demais. De resto, deixar falar populistas, demagogos e quejandos tem a vantagem de mostrar a todos o que realmente “pensam”. E enquanto o deputado do Chega aproveitar o papel de vítima que lhe tem sido oferecido, não se discute o mais importante, ou seja, o que “pensa” e “defende”, mas apenas que não o deixam falar. E isso é mais perigoso.

E depois há Rio. Assolado o país pela cólera, o líder do PSD decidiu que o papel da sua oposição não é… oposição, é colaboração. Como não se discutem as Grandes Opções do Plano ou o Orçamento do Estado, e desconhecendo-se o posicionamento político do vírus, a postura de Rio passa por responsável. Não é ideologia, é combate a uma doença. A imprensa faz-lhe o favor de reproduzir as reverberações que o seu discurso teve no Governo espanhol, onde até o radical líder do PODEMOS oportunamente o utiliza como “bom exemplo”. A que se seguem, por cá, os provincianos delíquios de orgulho nacional, difundidos nas redes sociais e nas conversas de café.

E Rio é consequente: envia recados internos sobre evitar “ataques” ao Governo e ordena o chumbo por atacado das alternativas da restante oposição. Os tempos são de patriotismo, há que estar com quem manda! (Para pouco depois apresentar na AR propostas de conteúdo muito idêntico àquelas que chumbara, muito provavelmente sem as ter lido.) Para além do evidente desnorte, o que inquieta em Rio não é o que faz enquanto líder do principal partido da oposição, mas antes o que este comportamento revela se fosse ele o Primeiro-Ministro. Estivesse ele à frente do executivo numa situação semelhante, não custa imaginar que em cada intervenção censurasse as iniciativas dos restantes partidos como lesivas do interesse nacional e anti-patrióticas.

Falta-lhe perceber (a Rui Rio) que é justamente numa situação de emergência, em que os direitos, liberdades e garantias individuais conhecem constrangimentos, que o papel da oposição é essencial.

Falta-lhe perceber que é justamente numa situação de emergência, em que os direitos, liberdades e garantias individuais conhecem constrangimentos, que o papel da oposição é essencial. A fiscalização escrupulosa da atuação de um Governo com poderes acrescidos sobre uma população é precisamente o que uma oposição patriótica deve fazer. E senão nessa altura, quando? De resto, Rio não compreende – e talvez já não vá a tempo de se iluminar – que apresentar alternativas não é estar contra; é ter uma perspectiva diferente para resolver um mesmo problema. Será que é preciso dizer que ninguém está a favor do vírus? Mas o modo como se combate e se gere uma situação tão delicada como esta pode e deve ser discutido. Com Rio há sempre um certo odor a mofo.

O ar dos tempos não é recomendável por óbvias razões. Mas num útil sortilégio de circunstâncias, enquanto os cidadãos colocam máscaras para se protegerem mutuamente, outras vão caindo. E o que essa queda revela, no caso de Ferro e Rio é, no essencial, duas figuras menores do regime.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.