Entre a sede e as fontes

Na experiência crente, a pergunta sobre «onde está Deus» interroga-nos sobre o modo como olhamos para o mundo e os outros. Se é verdade que somos habitados pela sede, precisamos de ganhar olhos para descobrir as fontes imprevistas.

Mosaico

1. No final da matiné – organizada em casa da nossa professora de canto –, quando já estávamos só na parte do lanche, as pessoas começaram a despedir-se. O costumeiro “beijinhos e até à próxima” deu lugar ao óbvio e inconscientemente pronunciado “Feliz Natal!” até que a Raquel, à terceira, recorda com um sorriso: “Eu não celebro o Natal. Boas Festas!”. Quem já a conhecia há mais tempo lançou as mãos à cabeça, pediu desculpa – “Esqueci-me absolutamente. Ahah! Boas festas!” – e quem não a conhecia ficou a tentar perceber de onde aquilo vinha. Tenho a sorte de chamar amiga à Raquel, e gosto de lhe perguntar como são as suas celebrações. Nesse ano, ela convidou-nos para um jantar tipicamente judeu, já depois do Hannuka, onde nos explicou tudo: desde onde comprou os alimentos até onde os cozinhou e que pratos representavam o quê ou onde são comummente servidos. Trocámos ensinamentos, rimos à gargalhada e dissecámos as diferenças entre católicos e judeus, enquanto as analisámos nos tempos que correm. Quais as maiores dificuldades, os dias de descanso que já não são bem de descanso, as inevitáveis tradições, onde e quem se ajuda e como, que atividades se fazem em comunidade.

2. Uns meses depois, recebi um e-mail da minha amiga Sofia, a contar a história de uma instituição de solidariedade social que, em Luanda, acolhe crianças de famílias em dificuldades. Eram precisas fraldas, produtos de higiene básica, roupas, livros… Explicou quanto custava cada item, disponibilizava formas de fazermos chegar o dinheiro a Angola, e no final da empreitada – que se não estou em erro até coincidiu com a Páscoa ou com o Natal – aquela seria a sua, a nossa renúncia. Houve fotografias do que foi comprado, da entrega, e testemunhos da alegria provocada com um gesto tão simples. Entretanto, a Sofia mudou-se para Portugal e pouco tempo depois a conversa surgiu: dei-lhe a conhecer algumas instituições que precisam de apoios e com as quais tenho contacto regular porque sei que ajudá-las é um dos seus objetivos [extremamente discretos e silenciosos]. Com uma mãe formada em Teologia e um pai devoto de Santa Ana, ela não podia ser mais agnóstica – nem mais curiosa, preocupada e atenta a tudo aquilo a que carinhosamente chamo de ‘beatice’.

3. À mesa do almoço, num regular dia de trabalho depois da Páscoa, falávamos sobre o fim-de-semana grande. “Não se preocupem que rezei por vós”, atirei-lhes em tom de brincadeira. “Acho que nem assim vamos lá”, atiraram com um sorriso do outro lado. Trabalhar no meio de pessoas não crentes tem tanto de divertido quanto de desafiador. A conversa acabou à volta de religião, como não podia deixar de ser, com um a dizer “a minha filha agora faz-me uma série de perguntas às quais eu não sei responder, mas desconfio de que em breve me vá pedir para ir para a catequese”. “E vai?”, retorqui. “Por mim, vai, se quiser. Eu não acredito [em Deus] mas acho que elas devem fazer o seu próprio caminho”. Do outro lado, um irritado “desculpa lá mas a Igreja irrita-me profundamente. Há demasiadas histórias de poder, de dinheiro, de aldrabices…batem com a mão no peito e depois? Eu tive uma educação totalmente católica, mas não entendo..não entendo” Sorri, e anui. “A Igreja é feita de homens”, lembrei dando início ao que já se antevia uma conversa longa. A discussão [fundamentada, intelectualmente estimulante e séria] subiu de tom no decorrer do almoço e acabou em gargalhadas e pedidos de desculpa pelas exaltações de parte a parte.

4. Conseguimos finalmente falar, ao fim de duas semanas de trabalho louco e chamadas feitas em horários baralhados. Uma das minhas melhores amigas, irmã de coração, diz-me de repente “ai, acho que estou com uma crise de fé”. Geralmente são coisas que lhe passam rápido – já nos conhecemos há muitos anos – porque nunca são verdadeiras crises de fé. Essa ela tem-na bem fundamentada e vivida e alimentada. São mais crises de crença na humanidade e preocupações por o bem parecer vencer o mal, por tudo parecer mais penoso para quem segue um caminho que acredita correto, por haver lugar de destaque para quem põe o seu eu à frente do bem comum. Partilho de todas elas, e falamos sobre isso amiúde. Uns dias depois voltámos a conversar, já depois de termos visto um episódio de uma série televisiva que ambas acompanhamos há anos. “Resolveu a crise”, dizia ela. “Tanta homilia, tanta oração, e afinal o que me fez sentido foi um episódio de uma série”, ria-se.

Notas

Numa recente entrevista ao Público, o Pe. Tolentino Mendonça falava da sua experiência de orientação dos exercícios espirituais do Papa Francisco, esta Páscoa. O tema que escolheu, a sede, fez-me de repente recordar as várias pessoas que fazem parte do meu quotidiano, tão cheias de sede, mesmo que não de Deus – ou do Deus como os crentes O conhecem. “Crer não é satisfazer-se, não é ter as soluções nem ter encontrado as respostas”, dizia o Pe. Tolentino.  “Crer é habitar o caminho, habitar a tensão, viver dentro da procura […]”.

A Bíblia está repleta de referências à sede – seja no Antigo, seja no Novo Testamento, durante as pregações de Jesus até à hora da Sua morte.[1] E é dela que estão também cheias tantas pessoas que, ao nosso lado, são exemplo maior de amor, de acolhimento, de generosidade, de perdão, de entrega, de inquietação: de tudo aquilo que é pedido aos crentes. E não é, também, proposta de Jesus, da Igreja, que encontremos Deus em tudo o que nos rodeia? [2]

Depois de ter crescido na província, numa comunidade paroquial enorme e coesa, educada nos mais profundos valores cristãos católicos, com amigos crentes e uma vida que girava, em muitas das suas vertentes, em torno da religião, eis que ao fim de uns anos me vi ‘obrigada’ a encontrar Deus em tantas pessoas não-católicas: amigos, colegas, conhecidos, agnósticos, ateus, judeus, budistas, protestantes. Contextos laborais que têm tudo menos uma religiosidade intrínseca. Um quotidiano que passa por encontrar mais pessoas com quem, às vezes, se tem muito menos em comum do que o que se gostaria.

Só que tem sido precisamente nesta inquietação, neste desassossego da diferença, neste constante espanto e medo do que estará por vir que Deus se tem mostrado mais presente. Mais sólido. Mais amoroso. O desafio, parece-me, é precisamente olhar para o mundo que está ao nosso lado e que nos parece tão distante com o olhar de Jesus, na procura incessante de matar a sede de Deus. Desconfio de que Ele nos apanha de surpresa em praticamente todas as pessoas de quem, tantas vezes, tendemos a ter pena por não partilharem a nossa fé.

[1] “Depois, vendo Jesus que tudo já estava consumado, para se cumprir a Escritura, disse: Tenho sede!” (João 19,28)

[2] Apenas alguns exemplos:

“Vocês me procurarão e me acharão quando me procurarem de todo o coração” (Jeremias 29,13).

“Recorram ao Senhor e ao seu poder; procurem sempre a sua presença” (Salmos 105,4). “Por isso digo: Peçam, e será dado; procurem, e encontrarão; batam, e a porta será aberta.” (Lucas 11, 9)

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.