Empoderamento, empatia e implicação

É sobre a relação do professor com o aluno que gostaria de refletir, porque, quando me perguntam «O que é que fica da pandemia no ensino?», eu respondo que fica o sublinhado da relevância do professor e da sua relação com o aluno.

No livro Learning by Refraction: A Practitioner’s Guide to 21st-Century Ignatian Pedagogy[1], Johnny Go, SJ e Rita Atienza propõem a metáfora da «refração» para descrever o que o aluno faz quando aprende: «A verdadeira aprendizagem requer que o aluno faça curvar os conteúdos, que os altere e que os torne seus. Na aprendizagem, os conteúdos são adequados pelo aluno ao seu contexto». Neste sentido, ao descreverem as relações que se estabelecem entre os três componentes em jogo num processo de aprendizagem – o aluno, o professor e os conteúdos das disciplinas[2] –, é natural que os autores identifiquem a relação do aluno com os conteúdos como a mais importante, porque, em rigor, é aí que encontramos a refração. Todavia, é sobre a relação do professor com o aluno que gostaria de refletir, porque, quando me perguntam «O que é que fica da pandemia no ensino?», eu respondo que, entre outras coisas, fica o sublinhado da relevância do professor e da sua relação com o aluno.

Ao caracterizarem as três relações que têm lugar numa sala de aula (professor-conteúdos, professor-aluno e aluno-conteúdos), os autores do Learning by Refraction apontam, para cada uma, dois elementos que devem estar presentes para que ocorra a aprendizagem por refração. No que diz respeito à relação professor-aluno, referem os autores que os dois elementos que nela devemos encontrar é a empatia e o empoderamento[3]. De uma forma resumida, podemos dizer que a empatia nasce do interesse genuíno pelos alunos, cresce com o desejo de os ajudar e concretiza-se sempre que o professor tem em consideração as circunstâncias e o contexto dos alunos para lhes proporcionar a orientação de que necessitam para aprender; o empoderamento é o resultado de uma didática que tem como objetivo principal a autonomia dos alunos, ou seja, uma didática que não só capacita os alunos, como lhes dá as ferramentas necessárias para a autoaprendizagem, promovendo neles um maior controlo da própria vida e uma maior realização pessoal.

A empatia implica que o professor reconheça e respeite cada aluno na sua diferença e que o acolha de acordo com o seu contexto específico.

A empatia implica que o professor reconheça e respeite cada aluno na sua diferença e que o acolha de acordo com o seu contexto específico. Apenas desse modo poderá acompanhá-lo com maior propriedade no seu processo de aprendizagem. Todavia, a singularidade de cada aluno enquanto objeto do ensino é trabalhada num modelo relacional que lhe é contrário, pois a relação professor-aluno tece-se na moldura de um grupo. A relação sujeito-objeto é uma relação professor-turma. O individual dilui-se no coletivo. Portanto, as idiossincrasias de cada aluno vivem no equilíbrio possível de uma atenção personalizada que apenas pontualmente pode ser individualizada. É neste equilíbrio que radica o grande desafio que o ato de ensinar coloca: quando o professor abre a porta da sala de aula, leva consigo o dever de cuidar de todos e ao mesmo tempo de cada um dos seus alunos. Esta reflexão é importante para clarificar o que se entende por atenção personalizada no âmbito da empatia na relação professor-aluno, pois muitas vezes o aluno espera um acompanhamento que vai além do que é possível e desejável e, em sentido inverso, não menos frequentemente o professor fica aquém do que é necessário.

A relação professor-aluno não é uma relação pessoal de amizade, dado que lhe subjaz uma funcionalidade, de acordo com a qual o aluno é o objeto da ação de um sujeito, que é o professor. Contudo, ao entendermos a empatia como elemento constituinte desta relação, estamos de modo explícito a assumir o respeito pela liberdade e pela dignidade do aluno e a reconhecer a condição de sujeito que lhe corresponde enquanto pessoa, estatuto que lhe confere paridade em relação ao professor. Evidentemente, o aluno não é um par no sentido de se anularem as hierarquias ou os papéis sociais no espaço da sala de aula, mas no sentido pedagógico de ele ser coprotagonista da aprendizagem e no sentido antropológico de se «reconhecer o aluno como um semelhante existencial»[4]. Parece óbvio, mas nem sempre é: numa relação educativa, o aluno-objeto é também um aluno-sujeito. Dentro da sala de aula, ao mesmo tempo que, enquanto aluno-objeto, apreende conhecimentos para lidar consigo e com o mundo, o aluno é também, enquanto aluno-sujeito, um interveniente ativo no processo de aprendizagem e é o sujeito do seu processo de crescimento enquanto pessoa. Ora, como sujeito numa relação empática, o aluno espera que o professor consiga conciliar a assimetria da relação professor-aluno com o caráter dialogal que a deve permear. Isto é, sem pôr em causa a relação assimétrica de poder, o aluno espera que as aulas não promovam formas de desigualdade, o que acontece sempre que nelas marcam presença práticas contrárias ao diálogo, como é o caso do autoritarismo, da intransigência, da falta de liberdade ou do abuso de poder. Se na aula predomina o monólogo – literal ou metafórico –, o professor não está a acolher o aluno como seu semelhante. Está a anulá-lo como sujeito. Uma maneira simples de aferir o nível de empatia é analisar a resposta que um professor dá à pergunta «porquê?» quando apresenta uma determinada regra na sala de aula. A empatia dita que não se limite a apresentar a regra, mas que a fundamente e que evidencie nela o maior bem do próprio aluno. Pode acontecer que, ainda assim, o aluno não concorde com a regra, mas todos reconhecemos o quão educativo é sabermos cumprir regras com que não concordamos, ainda que compreendamos a sua fundamentação.

O facto de o aluno ser sujeito e de ser o centro do processo de aprendizagem, como dita a perspetiva da refração, não significa que se absolutize esse papel, como às vezes parece acontecer em discursos em que tudo é negociável com os alunos, desde os conteúdos às regras, passando evidentemente pela didática. O empoderamento não significa que os alunos assumem o poder de aprender o que querem, com as regras que querem e como querem. Significa antes que o professor, enquanto organizador do qual depende o processo de aprendizagem, os deve conduzir para uma progressiva autonomia, de tal modo que eles sejam competentes com o conhecimento que adquiriram e que assumam compromissos a partir dele. O empoderamento não implica que o aluno saiba o que o professor sabe, mas sim o que ele precisa de saber para ser autónomo. O empoderamento acontece, portanto, quando o professor perspetiva o aluno como sujeito e, mais do que respeitar as suas circunstâncias, o ajuda a superar-se e a desenvolver a melhor e a mais completa versão de si próprio, percorrendo o sólido caminho da autonomia.

O empoderamento acontece, portanto, quando o professor perspetiva o aluno como sujeito e, mais do que respeitar as suas circunstâncias, o ajuda a superar-se e a desenvolver a melhor e a mais completa versão de si próprio, percorrendo o sólido caminho da autonomia.

Ainda que devamos assumir uma visão sistémica sobre as diferentes relações na sala de aula, que tenha em consideração com igual importância as ligações de interdependência que se estabelecem entre todos os elementos que as compõem, não posso deixar de destacar e acrescentar à reflexão um terceiro elemento que, apesar de os autores o associarem à relação aluno-conteúdos, decorre em grande medida do sucesso da relação aluno-professor: a implicação.

No âmbito da sua relação com o mundo, espera-se que um aluno reconheça que o conhecimento que adquire na escola faz parte do seu projeto vital e que, partindo desse entendimento, desenvolva autonomamente a vontade de aprender. Por outras palavras, espera-se que os alunos se impliquem nos conteúdos das disciplinas. É certo que é muito importante contar com professores motivantes, com estratégias motivacionais de aprendizagem pelo jogo e com conteúdos a que os alunos atribuam uma aplicabilidade prática imediata, mas acima disso tudo está a vontade de aprender, sem a qual o resto é insuficiente. Se a vontade de aprender decorrer apenas da motivação extrínseca, dificilmente haverá aprendizagem significativa. Para haver refração, é necessário que o professor crie as condições para que os alunos cultivem a implicação.

Quando os alunos dizem estar desmotivados, dedicamos tempo – tanto a escola como as famílias – a definir estratégias para os motivar, mas é sobretudo a vontade de aprender que deve ser trabalhada com os alunos. Procurar a solução apenas fora do aluno é desresponsabilizá-lo numa vivência em que é ele o elemento fulcral. Além disso, nem sempre é possível ou até desejável implementar as estratégias que são, à partida, didaticamente mais motivadoras. Voltemos aos exemplos anteriores. Em primeiro lugar, e ainda que isso não invalide a sua competência, haverá sempre professores que os alunos consideram pouco motivantes, dado que não só nem todos revelam essa capacidade como – e principalmente – os alunos consideram motivadores os seus professores por razões muito diferentes (por exemplo, há alunos para quem um registo mais informal do professor é entusiasmante e outros para os quais esse registo tem o efeito contrário). Em segundo lugar, nem sempre as estratégias lúdicas são aplicáveis, nem é desejável que assim seja, na medida em que um dos objetivos da escola é o de capacitar os alunos para a aprendizagem autónoma ao longo da vida, e esta poucas vezes nos oferece aprendizagens em ambientes divertidos. Por fim, é evidente que nem tudo o que os alunos aprendem na escola pode ser percecionado como “útil” ou ter uma aplicabilidade prática imediata.

Procurar a solução apenas fora do aluno é desresponsabilizá-lo numa vivência em que é ele o elemento fulcral.

Portanto, o que é decisivo é que os professores (e as famílias) trabalhem com os alunos a sua vontade de aprender, evitando, na medida do possível, assumir a administração regular de doses de motivação que, além de terem uma aplicabilidade restrita, criam dependência e enfraquecem a autonomia. Neste movimento da sua relação com o aluno, em que descentra de si a responsabilidade da motivação (um movimento próprio do empoderamento), o professor promove a independência do aluno, abrindo assim caminho a uma implicação genuína.

Em síntese, para que ocorra a aprendizagem significativa da refração, é necessário que todos os elementos inerentes às relações que se estabelecem na sala de aula entre o aluno, o professor e os conteúdos funcionem harmoniosamente. Por outras palavras, é necessário que tudo se ordene no sentido de a relação aluno-conteúdos ser a melhor possível. É aí que reside a finalidade do ensino. Mas a pandemia veio, sem sombra de dúvida, sublinhar a importância de cuidar da relação professor-aluno, porque é no empoderamento e na empatia construídos presencialmente que se inscrevem os procedimentos da circulação fluída do saber, indispensáveis à promoção da independência do aluno. É também através desses elementos que se concretiza a densidade humana do ato de educar, que ganha uma profundidade no contacto pessoal que a relação mediada pela tecnologia não consegue alcançar.

Se o professor não trabalhar no sentido do empoderamento e da empatia e se não der espaço à implicação do aluno, pode viver satisfeito com as imagens refletidas em espelhos de excelência, mas é apenas aparência e ilusão: um espelho limita-se a devolver o que recebeu, não se apropria de nada.

 

Fotografia: João Ferrand

[1] Go, Johnny; Atienza, Rita (2019). Learning by Refraction: A Practitioner’s Guide to 21st-Century Ignatian Pedagogy. Ateneo de Manila University Press.
[2] Ao longo do livro, os autores chamam a este componente «o mundo», entendido como «qualquer fenómeno, natural ou social, que seja objeto de estudo» de uma determinada disciplina. Ou seja, «o mundo» é os conteúdos ou a matéria de estudo das disciplinas. Para facilitar a leitura, utilizarei o termo «conteúdos» ao longo do texto.
[3] «Empowerment», no original. Apesar de «capacitação» ser muitas vezes preferível a «empoderamento», esta tradução é mais adequada ao contexto do texto original, dado que evidencia a ideia de autonomia.
[4] Colombani, María Cecilia (2014). “La construcción del “entre” en el espacio educativo”. Entramados: educación y sociedad n.º 1.

 

 

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.