Em defesa dos exames (mesmo que lhes chamem provas de aferição)

O que a auditoria do Tribunal de Contas escreve sobre a avaliação dos contratos de autonomia poderia ser escrito, com pouquíssimas diferenças, sobre os outros instrumentos de acompanhamento da qualidade do ensino existentes em Portugal.

Dois factos aparentemente não relacionados chamaram-me a atenção nos últimos meses. No início de fevereiro, o BE anunciou que iria apresentar uma proposta de lei a extinguir os exames do 9.º ano. No dia 13 de março, o Tribunal de Contas (TC) tornou pública uma auditoria aos contratos de autonomia celebrados entre o Ministério da Educação e duas centenas de escolas públicas estatais.

Começando pelo anúncio do fim dos exames, considera o BE que “em nome da continuidade pedagógica que o CDS aqui traz à discussão, o Bloco de Esquerda vai apresentar um projeto para acabar com exames do 9.º ano, que neste momento é um anacronismo nesta segmentação que não deve existir entre ciclos de ensino e que impede essa continuidade pedagógica” (o sublinhado é meu). Traduzindo: o BE considera que os alunos não devem ser examinados por alguém de fora da escola que frequentam até ao final do ensino secundário (pelo menos ainda não anunciaram o fim dos exames do secundário). O importante, na ideia do BE, é que os alunos vão percorrendo os anos escolares. Se aprenderem algo pelo caminho tanto melhor. Mas, se não aprenderem, isso não é motivo para não passarem de ano. Este anúncio, é bom recordar, vem no seguimento da abolição dos exames do 4.º e 6.º anos, a primeira grande acção na área da educação da nova maioria (PS, BE e PCP) saída das legislativas de 2015.

Um mês e pouco depois, acordei com uma manchete do Público que estranhei: o Tribunal de Contas tinha publicitado uma auditoria que fez aos contratos de autonomia (contratos pedagógicos celebrados entre o ministério da educação e escolas). Não percebi, confesso, a que propósito o TC tinha mobilizado uma equipa de cinco pessoas para analisar estes contratos, que são documentos de cariz exclusivamente pedagógico. Mas foi, justamente, esta bizarria da administração pública que me despertou interesse: como é que cinco diligentes funcionários públicos, exteriores ao Ministério da Educação, tecnicamente competentes nas matérias sob alçada do Tribunal, mas seguramente desconhecedores do nosso sistema educativo, olhavam para algo que foi anunciado por sucessivos governos como um importante instrumento de política educativa (os ditos contratos de autonomia)? Vale a pena ler as 37 páginas que compõem o relatório. Recomendo-o vivamente; sem ironias. Resumidamente, o TC explica que os contratos contêm metas, que prevêem a avaliação dos resultados e que estabelecem que, em função dessa avaliação, o contrato seja renovado ou não. Depois explica que analisou uma amostra destes contratos e que concluiu o seguinte: (i) as metas não estão claramente definidas, (ii) os contratos não são correctamente avaliados e que (surpresa, digo eu), (iii) apesar disso foram todos renovados. Mas tão curioso como o que escreve o TC, é o contraditório que foi exercido pela Inspeção Geral da Educação e Ciência e pela Equipa de Projeto dos Contratos de Autonomia das Escolas (as entidades que avaliam e acompanham os contratos). Responderam estas entidades que o TC tem razão – as metas não estão bem definidas e não foi tudo avaliado como previsto – mas que desde a celebração dos contratos até ao momento da avaliação houve muitas alterações e por isso foi feito o que era possível. Uma das coisas que mudou é que os exames nacionais do 4º e 6.º anos foram abolidos pela Assembleia da República e Governo, pelo que a avaliação dos resultados (que dependia de haver exames nacionais) se tornou impossível (fica subentendido que não temos hoje outra maneira de avaliar resultados).

Depois explica que analisou uma amostra destes contratos e que concluiu o seguinte: as metas não estão claramente definidas, os contratos não são correctamente avaliados e que (surpresa, digo eu), apesar disso foram todos renovados.

Para os que acompanham os detalhes da educação com menos afinco, tudo isto pode parecer esotérico. Mas cuidado. Estamos a viver uma mudança de paradigma no sistema educativo em Portugal. E isto pode correr muito bem ou muito mal. E se correr muito mal, calha-nos a todos lidar com as consequências.

Nos anos 80, Portugal fez crescer muito – e bem! – o seu sistema educativo. Em 1970, frequentavam o 1.º ciclo 84% das crianças que aí deveriam estar; no 2.º ciclo a percentagem era de 22%, e no 3.º ciclo 14%. O ensino secundário só era frequentado por 4% dos jovens com essa idade. Em 1990, estas percentagens já eram de 100%, 69%, 54% e 28%, respetivamente. Como se pode constatar, a evolução foi brutal (no bom sentido). Estes bons resultados foram conquistados construindo muitas escolas e contratando muitos professores. Um crescimento tão grande e tão rápido só foi conseguido porque tivemos políticas públicas nacionais, centralizadas e muito descritivas do que as escolas e os professores deviam fazer (como dar a matéria, como avaliar, como organizar as aulas, etc…). Não havia em Portugal licenciados suficientes e disponíveis para irem dar aulas, por isso contratámos como professores alunos que ainda mal tinham saído do ensino liceal. Mas isto é o passado. Hoje temos escolas suficientes, os professores são todos licenciados e as crianças estão (quase) todas na escola. O problema hoje é outro: como conseguir que cada aluno aprenda o que tem de aprender, que cresça como tem de crescer. Ora, isto não se consegue com políticas nacionais centralizadas ditadas pelo ministério da educação. A melhoria de que precisamos depende da capacidade de cada escola dar resposta aos desafios específicos de cada um dos seus alunos. É a constatação deste facto singelo que levou sucessivos governos a irem dando mais autonomia às escolas. É por isto que nasceram os contratos de autonomia. Mas, nas escolas como na vida, isto de ter autonomia e usá-la não é fácil.

Os exames nacionais têm limitações? Claro que têm. Mas o facto é que, fora os exames nacionais, não temos em Portugal outros instrumentos que cumpram esta função de dar alguma garantia aos pais de que os seus filhos não estão apenas a passar tempo na escola; de que estão efectivamente a aprender algo!

A educação desempenha um papel social tão importante, que o sistema de ensino nos deve preocupar tanto pelos nossos filhos, quanto pelos filhos dos outros. O Estado tem a obrigação de garantir que as escolas, todas as escolas, cumpram padrões de qualidade (por isso o Estado não deveria ser o prestador de serviços educativos, mas isso fica para outro artigo). É por isto que os contratos de autonomia, bem como todas as outras políticas que dão mais autonomia às escolas, como sejam o Estatuto do Ensino Particular de 2013, o Decreto-Lei da inclusão de 2018 e o Decreto-Lei do currículo também de 2018, estão dependentes da existência de instrumentos de garantia da qualidade do serviço educativo prestado. E isto não é fácil.

Os exames nacionais têm limitações? Claro que têm. Mas o facto é que, fora os exames nacionais, não temos em Portugal outros instrumentos que cumpram esta função de dar alguma garantia aos pais de que os seus filhos não estão apenas a passar tempo na escola; de que estão efectivamente a aprender algo! O que a auditoria do Tribunal de Contas escreve sobre a avaliação dos contratos de autonomia poderia ser escrito, com pouquíssimas diferenças, sobre os outros instrumentos de acompanhamento da qualidade do ensino existentes em Portugal. Pouca gente ousa dizer isto. Ainda bem que o TC o fez.

Ter sido necessário ser uma entidade de fora do Ministério a fazê-lo, demonstra bem que seria profundamente errado acabar com os exames nacionais. Os exames nacionais têm limitações, é verdade, e não devemos dar-lhes uma importância desmedida. Mas neste momento, os exames nacionais são a única aproximação, independente e objectiva, ao que se passa nas escolas. A autonomia de que hoje as escolas gozam em Portugal é fundamental. Mas com mais liberdade tem de vir mais responsabilidade. Grandes saltos em frente sempre deram mau resultado.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.