Educação… licença para matar?

“Nunca na história da humanidade tantas pessoas com tão elevados níveis de educação mataram tantas outras pessoas”, Vernor Muñoz - Relator Especial das Nações Unidas para o Direito à Educação (2004 - 2010).

Gostava de começar esta série de escritos partilhando aquela que considero ser uma das frases que mais me marcou e tem marcado no que respeita ao pensar e agir na área da educação. O ano era o de 2012 e encontrava-me em Madrid, no mês de julho, a participar numa semana de trabalho da Global Ignatian Advocacy Network para o Direito a uma Educação de Qualidade[1]. O encontro reuniu 22 pessoas provenientes de quatro continentes, representando organizações, universidades e instituições transnacionais da Companhia de Jesus, e teve como principal objetivo produzir um documento de posicionamento[2] em relação ao tema desta rede global: o direito a uma educação de qualidade[3]. Para a intervenção inaugural, a organização do encontro convidou o costa-riquenho Vernor Muñoz, Relator Especial das Nações Unidas para o Direito à Educação, entre 2004 e 2010. Logo a abrir a sua apresentação, foi direto à questão essencial, sem eufemismos ou atenuantes. Declarou: “Nunca na história da humanidade tantas pessoas com tão elevados níveis de educação mataram tantas outras pessoas”… Desde aí esta frase tem-me acompanhado e servido de alerta permanente em relação à educação que temos, que praticamos e que queremos.

Não é uma questão de me posicionar como “velho do Restelo” ou “arauto da desgraça”, mas tão só o de reconhecer que, apesar dos níveis de ensino em termos gerais continuarem a aumentar em todo o mundo, infelizmente, também as desigualdades, os conflitos, as iniquidades e insustentabilidades têm crescido no mundo em que vivemos, sendo que os seus principais decisores e promotores são, na sua grande maioria, pessoas com elevados níveis de escolarização, secundados por um batalhão de especialistas e técnicos também eles altamente instruídos. Alguma coisa aqui não bate certo… Muita coisa aqui me inquieta e me faz não conseguir estar descansado apenas porque mais pessoas têm cada vez mais acesso a mais elevados níveis de educação ou porque esse é um dos objetivos de um qualquer desenvolvimento sustentável para 2030… Muita coisa aqui faz-me querer Mais do que apenas esse mais… E, a meu ver, enquanto não me desanime, enquanto não me roube a esperança, é uma inquietação à qual devo prestar muita atenção e sobre a qual quero agir.

Mas, então, a educação não é a arma mais poderosa que podemos usar para mudar o mundo, tal como Nelson Mandela fez questão de salientar e tantos outros e outras – antecedendo-o ou secundando-o – também? Não acredito eu nisso? Acredito. Daí a inquietação.

Estas duas ideias (a de Vernor Muñoz e a de Nelson Mandela) podem, à primeira vista e descontextualizadas, parecer contraditórias, mas, na realidade, elas têm muito mais de complementar do que de contraditório. De facto, a educação é uma arma poderosa; muito provavelmente a arma mais poderosa do nosso mundo. Mas também é verdade que não é qualquer educação que tem o poder de transformar as sociedades e o mundo no sentido original da frase atribuída a Nelson Mandela, isto é, a mudança para um mundo mais livre, mais justo, mais equitativo, mais solidário; em suma, mais pacífico e harmonioso – foi isso que o costa-riquenho Vernor Muñoz nos quis deixar bem claro naquela manhã de julho. Um certo tipo de educação, ou por ser essencialmente errada ou por ser profundamente incompleta (em termos de princípios, conteúdos, metodologias e fins), dá azo à formação de pessoas que, apesar de serem donas de muitos e variados conhecimentos, saberes e capacidades, possuem um muito fraco sentido de humanidade, justiça e solidariedade. E, sem esse sentido, então a educação muda o mundo sim, mas corre o sério risco de o mudar para pior.

Urge, então, pensar e agir com vista à busca e (re)encontro de uma educação transformadora no sentido da construção de sociedades mais justas e pacíficas, numa perspetiva integrada e integral, com, mas para também para além da escola e do indivíduo. É esta uma das principais motivações e objetivos do meu dia-a-dia; será este também o mote central das reflexões que procurarei partilhar neste Ponto SJ.


[1] Para saber mais, ver edujesuit.org
[2] Disponível em edujesuit.org
[3] Mais informações em entreculturas.org

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.