Dois autos de Natal

Maria, Zacarias e Simeão falam de salvação. Mas como é que Jesus salva, perdoa os pecados? Através da dimensão da amizade, partilhando a vida, sentando-se à mesa, criando laços de compreensão e escuta.

Nos três primeiros capítulos do seu Evangelho, S. Lucas narra a infância de Jesus. Na Anunciação a Maria, o anjo Gabriel diz claramente quem é Jesus, qual a sua verdadeira identidade. É o anjo, o enviado, o próprio Deus que diz quem é Jesus, caracterizado como Filho do Altíssimo, Filho de David, Rei (sobre a casa de Jacob), Santo, Filho de Deus. Nascido Jesus, um anjo do Senhor aparece aos pastores e fala-lhes de uma grande alegria para todo o povo: “Hoje, na cidade de David, nasceu-vos um Salvador, que é o Messias Senhor.”

A obra lucana tem uma grande verdade a dizer sobre Jesus: conta que Jesus salva (daí ser conhecido como o Evangelho da Salvação, o que mais vezes usa a palavra salvar). Lucas não pretende apenas instruir, catequisar, pretende também emocionar, tocar o coração do leitor. O seu Evangelho não é apenas uma bela história, mas um relato com intencionalidade, com uma estratégia teológica: o Filho de Deus que nasceu em Belém é o que sofreu a morte na cruz.

Este relato do nascimento de Jesus no terceiro Evangelho, o auto de Natal por excelência, está na origem de todas as representações a que os cristãos ao longo dos séculos foram interiorizando e dando expressão.

Brotou e brota dos temas do Evangelho da Infância a inspiração para que artistas de todos os tempos plasmassem em pintura, escultura, música e literatura de todos os géneros, segundo as escolas e as épocas. Esteve em cena, em Lisboa, a oratória L’Enfance du Christ, de Berlioz. Temas como a Anunciação, a Natividade, a Adoração dos Pastores e a Adoração dos Magos iluminaram o génio dos grandes mestres, de Bosch, Fra Angelico, Giotto, Leonardo da Vinci, Rubens, El Greco, Caravaggio, Van Der Weiden, Zurbarán , Rembrandt, só para referir alguns dos pintores que estão representados nos museus de todo o mundo.

Hoje, em que já é raro encontrar em Portugal um presépio em lugares públicos, os cristãos montam o seu próprio presépio em casa, que pode vir da infância, ou compram figuras moldadas em diversos materiais nas feiras de Natal. Felizmente há procura e os artesãos/artistas exibem e vendem os seus artefactos.

Quanto à produção literária em português, especialmente na poesia, este tema tem grande expressão, quer na poesia popular quer na poesia de autor. A poesia popular é rica de imagens de ternura sobre a Virgem Maria e o Menino. Os mais antigos textos poéticos de autor, de Afonso X, o Sábio (Cantigas de Santa Maria), as loas de Mestre André Dias e a prolífica produção de Gil Vicente, centram-se na figura da Virgem Maria, a intermediária do sagrado, e no Menino.

Para a generalidade dos autores do século XX, a época natalícia é pretexto para expressar a nostalgia da infância; a crítica de costumes com ironia e sarcasmo, e a apresentação de um protesto ético ou político-social a propósito das desigualdades.

Preparando o pano de fundo para o segundo auto de Natal, há que dar um salto para a contemporaneidade. Para a generalidade dos autores do século XX, a época natalícia é pretexto para expressar a nostalgia da infância; a crítica de costumes com ironia e sarcasmo, e a apresentação de um protesto ético ou político-social a propósito das desigualdades. Também se manifesta a tendência para o tratamento laico do tema, alheado de qualquer compromisso religioso: um bom exemplo é o poema de Alberto Caeiro sobre o Menino Jesus que fugiu do Céu, o mesmo que na voz de Maria Betânia ganha tanta emoção.

Vasco Graça Moura, um contemporâneo destes poetas, publicou em 1987 um breve livro na sequência do envio, por parte de Maria José Nogueira Pinto, a então provedora da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, do catálogo da exposição “Sinais dos Expostos”. E o autor explica na introdução: “aí pude ler o texto de muitos dos bilhetes que acompanhavam as crianças abandonadas, sobretudo no período que vai de fins do século XVIII a meados do século XIX. Entre o horror das situações e o fascínio dos pormenores concretos utilizados ou referidos como sinais, acabei por escrever esta Ronda dos Meninos Expostos, a que dei o subtítulo de Auto Breve de Natal.”

Cinco personagens executam os seus papéis burocráticos e de cuidado: 1º Secretário, 2º Secretário, Escrivão, 1ª Criada e 2ª Criada. “Estamos na santa casa,/ na sala de acolhimento/ das crianças enjeitadas.” Vai-se seguindo a ação de receber as muitas crianças por quem toca a sineta para fazer girar a roda: burocracia, vigilância dos sinais até serem recebidas. A última criança a chegar, já fora de horas, situação muito irregular: é um menino que vem nu, só com uma ligadura, num colchãozinho de palha, mas “muito estranho” não ter frio nem ter fome e dormir até todo contente. Muito irregular mesmo, pois foi difícil encontrar qualquer coisa que se parecesse com um sinal. Subitamente, um bilhete:

“Este menino nasceu/ foi no dia vinte e cinco/ de dezembro, há dois mil anos;/ volta a nascer nesse dia/ todos, todos os dezembros,/ e deverá ser entregue/ sempre a quem no procurar/ Ele é todos os meninos/ que aqui vieram parar/ e mais todos os meninos/ que ninguém abandonar./ Os que hão-de ter muitas dores,/ os que hão-de rir e folgar,/ e mais todos os meninos/ que dele hão-de precisar./ Nos meninos aluados/ ele é noite de luar,/ nos que estão na escuridão/ ele é a própria luz solar,/ nos meninos ensonados/ ele é sempre o despertar,/ nos meninos maltratados/ é a esperança de brincar …”

E o 1º secretário vai para a missa do galo que está quase a começar, deixando lavrado assento provisório para ser aceite tão rara criança. No dia seguinte o provedor tomará a decisão e ele poderá assinar.

No auto de Natal de Graça Moura, o Menino que é os meninos chorosos, doentes, esfomeados, que brincam no lixo, leva-nos a pensar nas crianças migrantes e suas famílias

No Evangelho de Lucas, Maria, Zacarias e Simeão falam de salvação. Mas como é que Jesus salva, perdoa os pecados? Através da dimensão da amizade, partilhando a vida, sentando-se à mesa, criando laços de compreensão e escuta. Não será este um modelo de caminho a percorrer pelos homens e mulheres do nosso tempo, para poderem construir a sua própria história através deste texto fundador?

No auto de Natal de Graça Moura, o Menino que é os meninos chorosos, doentes, esfomeados, que brincam no lixo, leva-nos a pensar nas crianças migrantes e suas famílias. As que morrem desidratadas, as que são atiradas de muros por uma ténue esperança de salvação da miséria. As crianças do Iémen, que nos enchem de aflição. Bem perto de nós, as crianças maltratadas nas famílias, vítimas de violência por parte de quem as devia proteger. As crianças com deficiência ou vítimas de doença oncológica. Por todas elas cantemos loas ao Menino que é todos os meninos!

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.