Da manta de retalhos à beleza do pano

Todos pretendemos políticas mais justas, inclusivas e sustentáveis. Como seriam efetivas estas metas se fosse crescendo em nós a consciência do seu sentido cósmico e integrador, intimamente dependente de estilos de vida mais ordenados!

Está em discussão pública, até ao próximo dia 15 de junho, o Plano Nacional de Ordenamento do Território (PNOT) para os próximos dez anos. “Território Portugal – onde o país encontra o futuro”, é o nome do documento. Ao percorrer os vários documentos disponibilizados, fiquei agradavelmente surpreendida com este “chão comum” unificador da realidade em toda a sua pluralidade, e pensava como precisamos de enraizar a justiça na articulação entre ordenamento do território e o ordenar das nossas vidas, base de sociedades efetivamente mais justas e sustentáveis.

Em latim, ordinare vem da raiz ordo, que significa ordem, organização, coisas alinhadas ou planeadas, coisas que sucedem umas às outras de acordo com certas regras, orientadas para um fim. Originalmente, ordo significava um conjunto de fios organizados num tear. Esses fios tinham uma ordem específica, que permitia tecer o pano. Algo que Teilhard de Chardin evoca ao falar do sentido cósmico de todas as criaturas e realidades, convergindo para um Ponto, que identifica com Cristo, «ponto em que a pluralidade é reduzida à unidade e para o qual convergem todos os fios da história» (Teilhard de Chardin, O Meio Divino).

Esta visão e reverência pela Realidade que integramos, orientada para um Todo, é a base necessária para uma real integração de políticas e estratégias, algo tão desejado e badalado nas agendas atuais de desenvolvimento, nomeadamente a agenda 2030 das Nações Unidas para o desenvolvimento sustentável. A ecologia integral que nos apresenta o Papa Francisco na Encíclica Laudato Si, recupera esta visão integradora e unificadora da realidade, que nos convida a cuidar da nossa Casa Comum a partir da consciência de que tudo está interligado. Pensava e ponderava assim, de forma nova, as palavras ordenamento, justiça e coesão, de alguma forma banalizadas nas elaborações políticas. O ordenamento do território aponta para o Cosmos (realidade ordenada) e assume a missão de alicerce, base de integração de diferentes políticas e realidades. É por isso tão importante que este e outros Planos promovam o crescimento desta consciência universal, a partir da consciência partilhada de que «cada indivíduo carrega em si algo de todo o interesse final do Cosmo» (Teilhard de Chardin, O Meio Divino).

Um território ordenado (tão em falta no nosso país que, em tantas regiões, no caos entre construção e espaços verdes mostra uma manta de retalhos e não um pano) revela e ao mesmo tempo promove uma orientação profunda e intrínseca das pessoas e comunidades que o habitam e que o cuidam. Uma paisagem harmoniosa revela o lugar ajustado, de cada parcela de realidade que a compõe (não é este o significado clássico de Justiça? – vontade perpétua e constante de dar a cada um o que lhe é devido – determinada, para lá da lei, pela identidade profunda do ser humano), tal como uma vida ordenada revela o equilíbrio entre as diferentes dimensões que a marcam, entre passado e presente, com abertura ao futuro.

No entanto, o desafio do ordenamento como base de relação justa entre as diferentes dimensões a assegurar num determinado tempo e espaço, é algo que nos escapa em termos de políticas e que nos causa resistência em termos de vida. Ordenar parece vir contra a nossa liberdade e autonomia, parece ser algo castrador e redutor. Vivemos num Mundo que cada vez mais exige direitos individuais e que, em nome da liberdade, atropela a ordem e orientação que nos constituem radicalmente e que nos transcendem. Reina o salve-se quem puder (e quem pode são sempre os mais fortes) que nos afasta da nossa finalidade e missão comum de salvar todos e que todos se salvem. Podemos tudo, mas parece que não podemos nada, vivemos tristes e vazios, sem sentido, fragmentados e dispersos. As políticas sucedem-se e não vemos qualquer efeito transformador. Perdemo-nos do Pano e da História a que pertencemos, que nos confere a nossa identidade e missão, que nos assegura a coesão, a felicidade. Na verdade, só somos felizes, como pessoas, como comunidades, como Humanidade, na medida em que integramos, constituímos e contribuímos para o Pano, a Paisagem, a História.

A ordem permite a beleza e a dignidade do pano, participado por todos os fios. Tendo como imagem a nossa Casa Comum, o ordenamento permite o justo lugar de cada realidade, de cada comunidade, através de relações equilibradas que asseguram a boa gestão de recursos limitados. Ao mesmo tempo, olhando a nossa vida, o ordenar (conceito tão caro a Santo Inácio nos seus Exercícios Espirituais) permite o justo equilíbrio entre todas as dimensões que a compõem, assegurando a nossa capacidade de optar e agir orientados para o Todo, livres dos nossos quereres e interesses parciais, orientados pelo bem e pela justiça, que constituem radicalmente cada ser humano. O mundo, feito da integração de cada parcela de território e de todas as relações que o caracterizam, precisa então desta ordem.

É muito interessante como esta relação se intui no PNOT, que aponta a urgência de uma “educação para o ordenamento” ao salientar a lacuna de cultura cívica que existe em Portugal a nível do ordenamento do território e, em particular, no planeamento e gestão territorial. Não obstante as orientações políticas crescentes no sentido da valorização dos recursos naturais, não existe ainda uma consciência geral deste Valor por parte dos cidadãos, nem uma educação para o seu reconhecimento e gestão. Um território sustentável e bem ordenado passa por um maior (re)conhecimento e valorização dos recursos pessoais e territoriais, terra onde podem germinar a justiça e a sustentabilidade. Como podemos gerir bem algo a que não damos valor?

A coesão territorial, de que estamos tão necessitados, precisa da nossa coesão interior. Numa primavera atribulada entre calores de verão e chuvadas de inverno, onde vai crescendo o desejo de passear e de usufruir de tantas boas paragens, que os fenómenos climáticos extremos e a memória de territórios abandonados e devastados por incêndios descontrolados, façam crescer em nós (em cada um, nas nossas famílias, nas nossas comunidades) a consciência de que somos parte integrante e responsável destas paisagens, ordenando a nossa vida para que possa cumprir-se o verdadeiro e justo ordenamento do território. E assim encontraremos o Futuro. «Da terra brotará a verdade e a justiça descerá do céu. O próprio Senhor nos dará os seus bens e a nossa terra produzirá os seus frutos. A justiça caminhará diante dele e a paz, no rasto dos seus passos» (Salmo 85).

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.