Da agitação à confiança: acolher (com) um coração humilde e manso

Ao contrário do jugo pesado imposto pelas prescrições da antiga Lei, o jugo de Jesus é suave e o seu fardo é leve. E tudo isto brota de um coração manso e humilde (Mt. 11, 29-30).

“Vinde comigo e descansai um pouco” (Mc. 6, 31). Este convite de Jesus é colocado por Marcos na sequência do envio dos discípulos em missão, dois a dois, e do entusiasmo que esta missão gerou: em nome de Jesus, haviam pregado o arrependimento dos pecados, expulsado demónios e curado enfermos (Mc. 6, 7-12). E tal era o vaivém entre os que chegavam e os que partiam que nem havia tempo para comer. A agitação dos discípulos é acompanhada por um outro movimento, o das multidões, que procuram Jesus. O texto diz que, apesar de Jesus e o seu grupo terem procurado, de barco, um lugar isolado para o merecido repouso, as gentes anteciparam-se, pelo que, quando desembarcaram, depararam-se com uma imensa multidão que os aguardava. Jesus enche-se de compaixão por todas e todos os que os seguiram, “como ovelhas sem pastor”, começando a ensiná-los e acabando por lhes dar de comer, multiplicando miraculosamente os poucos pães e alguns peixes disponíveis. O texto foi lido, na tradição cristã, em clave eucarística: também a comunidade cristã se constitui, se reúne em torno de Jesus para escutar a sua Palavra e alimentar-se de um corpo que, no pão e no vinho, se dá a todos.

Também a comunidade cristã se constitui, se reúne em torno de Jesus para escutar a sua Palavra e alimentar-se de um corpo que, no pão e no vinho, se dá a todos.

Outras passagens dos Evangelhos retomam esta preocupação de Jesus para com os que O procuram, convidando-os a encontrar n’Ele um lugar de repouso: “Vinde a Mim, todos os que estais cansados sob o peso do vosso fardo e vos darei descanso” (Mt. 11, 28). Curiosamente, o dito de Jesus é colocado também no contexto da missão na Galileia, ligando este convite ao elogio dos humildes e pequeninos a quem o Pai quis revelar os mistérios do Reino. Tal como as multidões referidas por Marcos. É neste desígnio do Pai que Jesus exulta, nos versículos imediatamente anteriores, e com o qual se sente intimamente identificado: afinal, é nas Suas palavras, nos Seus gestos, no Seu modo de acolher e de estar, que Deus se faz próximo, se deixa descobrir, enfim, se revela como Pai (Mt. 11, 25-27). E por isso o convite de Jesus prolonga-se a que aprendamos com Ele a fazer o mesmo, a tomá-lo como Mestre, a seguir a sua lei, que não é senão a do amor, da proximidade, do cuidar. Ao contrário do jugo pesado imposto pelas prescrições da antiga Lei, o jugo de Jesus é suave e o seu fardo é leve. E tudo isto brota de um coração manso e humilde (Mt. 11, 29-30).

E por isso o convite de Jesus prolonga-se a que aprendamos com Ele a fazer o mesmo, a tomá-lo como Mestre, a seguir a sua lei, que não é senão a do amor, da proximidade, do cuidar.

Reconheço que este texto foi muitas vezes lido numa clave pietista, e que à mente nos veem de imediato pagelas das nossas avós com o coração de Jesus, ou os diplomas da Primeira Comunhão – ainda vi o do meu pai… – em que o próprio Cristo, mostrando o Seu coração, estava junto ao tabernáculo distribuindo as espécies eucarísticas. Na verdade, esta devoção difundiu-se, com notável sucesso, desde o século XIX, com um claro empenho, entre nós, da própria Companhia de Jesus. Sabemos como a ela se associou uma espiritualidade de cariz reparacionista, convocando orações e sacrifícios em ordem à conversão dos pecadores e dos que se opunham aos desígnios de Deus e da sua Igreja, muitas vezes numa lógica de oposição às transformações políticas, sociais e culturais que marcaram todo o período de transição para a contemporaneidade.

Mas a valorização do culto em torno do coração de Jesus trazia também o marco da oposição ao jansenismo, a um pessimismo intrínseco sobre a natureza humana e a um rigorismo moral que permeavam de rigidez a vida espiritual e sacramental e acentuavam a consciência da distância e indignidade dos homens pecadores face a Deus, inacessível na sua perfeição. Promover a devoção ao coração de Jesus era assim um caminho para ultrapassar essa distância, relembrando que Deus tem um coração, que Ele próprio se fez próximo ao assumir a nossa carne. E sem se negar com isso a ser ferido, trespassado, dado à morte.

Se muito deste contexto devocional nos parece coisa do passado – embora talvez não tanto… – parece-me sobretudo que os textos evangélicos propostos ajudam-nos a relembrar este coração misericordioso de Deus, estas entranhas de misericórdia que se revolvem de compaixão pela Humanidade ao ponto de nunca desistir de vir ao nosso encontro, “para iluminar os que jazem nas trevas e na sombra da morte” (Lc. 1, 79), para nos retirar das nossas prisões e abrir caminhos novos de liberdade. Um jugo que não é pesado mas leve, que não se impõe mas que, pelo amor, sempre se antecipa, se dispõe a perdoar, a acolher, a resgatar, a olhar com compaixão. Numa das epístolas de João, chega-se mesmo a dizer que até quando o coração nos acusa, Deus é maior que o nosso coração (1 Jo. 3, 19-20). O Irmão Roger de Taizé citava muitas vezes esta passagem para afirmar que, na vida espiritual, na nossa relação com Deus, nada é inultrapassável, e que o amor de Deus sempre se antecipa para que a experiência de sermos queridos por Ele nos possa libertar para a aventura de uma humilde confiança.

O Irmão Roger de Taizé citava muitas vezes esta passagem para afirmar que, na vida espiritual, na nossa relação com Deus, nada é inultrapassável, e que o amor de Deus sempre se antecipa para que a experiência de sermos queridos por Ele nos possa libertar para a aventura de uma humilde confiança.

Na verdade, todos nós trazemos cicatrizes e marcas que nos dificultam esta relação verdadeira com Deus, este confiar no seu amor incondicional. Talvez porque não fizemos humanamente a experiência profunda de sermos amados por nós mesmos. Ou por termos interiorizado uma lógica de retribuição que, em última instância, sempre nos deixará incapazes, a léguas de distância, do que devíamos fazer. O segredo revelado por Jesus é o caminho de um coração manso e humilde, que avança na confiança e na entrega, mesmo nas fragilidades e nos momentos em que não vivemos na fidelidade ao dom próprio que cada um traz e no acolhimento do dom dos outros.

Talvez esta lógica pareça correr o risco de uma permissividade, de falta de regras, de normas. Já no tempo de Jesus se lembrava que a Lei só fazia sentido ao serviço do ser humano, como um caminho de liberdade, no acolhimento do dom de Deus e numa resposta livre em ordem a um mundo mais justo e fraterno. Também se lembrava que o amor de Deus rompe barreiras, sempre arranja oportunidade de se encontrar com cada um e cada uma na situação concreta em que se encontra, renovando o convite: “Vinde a Mim, todos os que estais cansados sob o peso do vosso fardo”. E se o Senhor Jesus foi e é o rosto deste Pai e deste convite, acolhendo todos e todas, olhando-nos com ternura e compaixão, também nos desafia a sermos hoje este Seu rosto, e a procurarmos cuidar do nosso coração, na busca de uma justa medida das coisas e da mansidão que, aliás, elegeu como bem-aventurança.

Olhar para um Deus que tem um coração, que se revolve de ternura pelos seus filhos e filhas, é, afinal, profundamente inquietante. Porque nos chama a deixar cair máscaras de um perfeccionismo estéril e sempre insuficiente, ou as nossas resistências a deixarmo-nos acolher e amar como somos. Mas também porque nos convoca para sermos uma idêntica presença junto dos nossos irmãos e irmãs, aceitando, como Jesus, a urgência de ir até às margens e para além delas. Este é também o apelo que o papa Francisco nos tem lançado repetidamente desde o início do seu pontificado. Afinal, nada mais faz do que relembrar à Igreja, às nossas comunidades e grupos, a cada um de nós, este desafio a alargar o coração. Para que todos encontrem na Igreja e em cada um dos discípulos e discípulas de Jesus este lugar de reconhecimento, de acolhimento. Esse “hospital de campanha” onde as feridas são ungidas com o óleo da misericórdia, se promove uma mansidão capaz de uma relação reconciliada e não violenta com os outros e com a própria criação, e os fardos que se tornam mais leves porque passam a ser partilhados.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.