Cuidar na morte, não antecipá-la

Estado não deve criar instrumentos que permitam e incentivem os cidadãos a desistirem da vida. Perante o sofrimento, a solução não é desresponsabilizar a sociedade promovendo a morte antecipada mas assegurar condições para uma vida digna.

O processo da legalização da eutanásia voltará ao seu início na próxima legislatura, uma vez que todas as iniciativas caducam com a dissolução do Parlamento, exceto as petições. Depois do chumbo no Tribunal Constitucional na sequência de um pedido de fiscalização do Presidente da República, o decreto que descriminaliza a morte medicamente assistida, resultante de uma nova redação, foi aprovado por maioria no Parlamento, mas vetado pelo Presidente da República.

O motivo que levou ao veto esteve relacionado com os conceitos de “doença fatal”, “doença incurável” e “doença grave” como condição para o recurso à morte medicamente assistida. O Presidente da República pediu à Assembleia da República “que clarificasse o que parecem ser contradições no diploma quanto a uma das causas do recurso à morte medicamente assistida. O decreto mantém, numa norma, a exigência de “doença fatal” para a permissão de antecipação da morte, que vinha da primeira versão do diploma. Mas, alarga-a, numa outra norma, a “doença incurável” mesmo se não fatal, e, noutra ainda, a “doença grave”. O Presidente da República pede que a Assembleia da República clarifique se é exigível “doença fatal”, se só “incurável”, se apenas “grave”.”

Muito para lá destes conceitos, o que está em causa é uma opção de fundo. Mais do que a opção individual de cada um sobre o fim da sua vida, é duma opção legislativa do Estado que se trata: qual a atitude a tomar pelo Estado relativamente à fase terminal da vida dos cidadãos. Um Estado que nega a muitos dos seus cidadãos os meios para viver dignamente, deve oferecer-lhes os meios legais para antecipar a morte? O legislador não pode assumir uma opção legislativa sobre a vida e a morte das pessoas sem ter em conta as circunstâncias e as consequências sociais dessa opção.

Um Estado que nega a muitos dos seus cidadãos os meios para viver dignamente, deve oferecer-lhes os meios legais para antecipar a morte? O legislador não pode assumir uma opção legislativa sobre a vida e a morte das pessoas sem ter em conta as circunstâncias e as consequências sociais dessa opção.

Na realidade, não há uma tendência internacional de legalização da eutanásia. Na Europa apenas quatro países legalizaram esta prática (Países Baixos, Bélgica, Luxemburgo e Espanha) e os efeitos dessa legislação são preocupantes, tendo em conta que o número de «mortes assistidas» cresceu muito para além do que era suposto e previsível. Nos Países Baixos é onde mais se pratica, sendo quatro por cento das causas de morte. No resto do mundo, apenas Canadá, Colômbia, o estado australiano de Vitória e a Nova Zelândia aprovaram esta medida.

Não gostaria de ver repetida em Portugal a experiência destes países de banalização da eutanásia com um alargamento de critérios inquietante, designadamente a crianças e a patologias do foro mental como a depressão crónica.

Consagrar na lei o direito a matar ou a matar-se não é sinal de progresso, mas de retrocesso civilizacional com implicações sociais, comportamentais e éticas para uma sociedade que se quer pautada por valores humanistas e solidários.

Existem hoje recursos da ciência que, se utilizados e acessíveis a todos, permitem diminuir ou eliminar o sofrimento físico e psicológico. Temos também já disponível o Registo Nacional do Testamento Vital – acessível na Área Pessoal do SNS 24 – que é um documento formal, feito por iniciativa do cidadão, onde este pode inscrever os cuidados de saúde que pretende ou os que não pretende receber. Temos assim oportunidade de manifestar a nossa vontade no sentido de não querermos que nos submetam a determinados tratamentos ou práticas médicas ou de não queremos que nos prolonguem artificialmente a vida, respeitando a morte como processo natural.

Legalizar a provocação da morte antecipada numa sociedade em que o valor da vida humana é avaliado muitas vezes em função de critérios de utilidade social, de interesses económicos, de responsabilidades e encargos familiares ou de gastos públicos, seria uma porta aberta a riscos e situações muito mais graves. Levaria, desde logo a que se empurrasse para a morte antecipada todos aqueles que vivem em condições de maior vulnerabilidade, nomeadamente com a exposição dos mais pobres à pressão direta e indireta para precipitarem a morte. Por outro lado, dificultava ainda ao Estado a tarefa de prosseguir, no domínio da saúde mental, a luta contra o suicídio.

Levaria, desde logo a que se empurrasse para a morte antecipada todos aqueles que vivem em condições de maior vulnerabilidade, nomeadamente com a exposição dos mais pobres à pressão direta e indireta para precipitarem a morte. Por outro lado, dificultava ainda ao Estado a tarefa de prosseguir, no domínio da saúde mental, a luta contra o suicídio.

Não se trata de uma questão sobre a dignidade da vida ou da morte. A dignidade da vida não se assegura com a consagração legal do direito à antecipação da morte. O princípio da igualdade implica que a todos seja reconhecida a mesma dignidade social. A vida não é digna apenas quando pode ser vivida no uso pleno das capacidades e faculdades físicas e mentais. A sociedade deve assegurar condições para uma vida digna a todas as pessoas independentemente da sua idade, da sua autonomia, das suas condições de saúde física, motora, intelectual ou do grau de deficiência.

Infelizmente, o acesso a cuidados que permitam diminuir ou eliminar a dor física ou psicológica não é igual para todos. São aqueles que têm mais recursos financeiros que podem mais facilmente ter acesso a cuidados paliativos, amplos recursos e avanços médicos e a uma estrutura de apoio. A prioridade de uma sociedade democrática e de progresso deve ser garantir o acesso universal a estes cuidados.

O que se impõe, no plano político e legislativo, é o investimento no Serviço Nacional de Saúde, nomeadamente no reforço dos cuidados paliativos, incluindo domiciliários, na garantia do direito de cada um à recusa de submeter-se a determinados tratamentos e querendo, de não lhe ser prolongada a vida artificialmente através de prática médica.

O dever do Estado é garantir que a morte seja sempre “assistida”, isto é, rodeada de todos os cuidados possíveis, não que seja antecipada. Uma boa rede de cuidados paliativos fará reduzir o número das pessoas que face ao sofrimento, exprimam o desejo da morte executada a pedido.

O Estado não deve criar instrumentos que permitam e incentivem os seus cidadãos a desistirem da vida. Perante o sofrimento humano, a solução não é a de desresponsabilizar a sociedade promovendo a morte antecipada das pessoas nessas circunstâncias, mas sim assegurar condições para uma vida digna, mobilizando todos os meios e capacidades sociais, a ciência e a tecnologia para minimizar o sofrimento e a doença e assegurar a inclusão social e o apoio familiar.

Fotografia: Luís Garção Nunes

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.