Como desencravar uma gaveta

Se nos dissessem que a nossa felicidade eterna depende da forma como desencravamos gavetas ou como corremos atrás de chapéus que voam ao vento, seguramente que as nossas forças se redobrariam.

O escritor e ensaísta britânico Gilbert Keith Chesterton escreveu, há cento e dez anos, um texto curioso sobre incómodos e contrariedades, em que defende que uma inconveniência é meramente uma aventura mal vivida. A sua ideia é que a culpa de algumas coisas se apresentarem às pessoas como chatices é, em grande parte, da falta de imaginação dessas pessoas. Se a proposição parece demasiado acusatória, é fácil compreender o seu sentido com um exemplo. Imagine-se alguém na situação de querer abrir uma gaveta que está encravada. Esta situação pode ser vivida como uma tremenda chatice. A gaveta não abre à primeira, e exige da pobre pessoa várias tentativas de puxões e um grande esforço para a desencravar. Mas Chesterton nota que o problema não é o esforço que esta empresa requer, ao contrário do que possa parecer. Na verdade, se um esforço idêntico fosse preciso noutra circunstância, rapidamente o executaríamos e até poderíamos ficar felizes de o fazer: imagine-se, por exemplo, que era dada a alguém a possibilidade de salvar a vida a um grande amigo, apenas desencravando essa gaveta. Naturalmente que poríamos todo o afinco na tarefa, e o esforço que ela nos exigiria, comparado com o potencial retorno, pareceria totalmente desequilibrado a nosso favor.

Assim, àquele que se irrita muito por ter de desencravar gavetas, ou por correr atrás de um chapéu que voa num dia de vento e chuva, há que avivar a imaginação e o sentido de humor, para que tudo se torne mais interessante

Joana Corrêa Monteiro

Assim, àquele que se irrita muito por ter de desencravar gavetas, ou por correr atrás de um chapéu que voa num dia de vento e chuva, há que avivar a imaginação e o sentido de humor, para que tudo se torne mais interessante. Mas Chesterton tinha ainda mais razão do que isto.

A verdade é que há uma vida que depende constantemente da forma como lidamos com as chatices e as contrariedades –  a nossa. No esforço de desencravar uma gaveta também se joga a minha alma. Claro que não pretendo uma apologia da ideia de que qualquer irritação é má ou injustificada; aliás, em alguns casos e em algumas doses, será mesmo necessária. O que me fascina é o facto de uma tremenda inconveniência poder ser, se encarada desde outro ponto de vista, um passo largo no caminho para o céu. Se nos dissessem que da forma como desencravamos gavetas ou como corremos atrás de chapéus que voam ao vento depende a nossa felicidade eterna, seguramente que as forças se nos redobrariam.

A verdade é que há uma vida que depende constantemente da forma como lidamos com as chatices e as contrariedades –  a nossa. No esforço de desencravar uma gaveta também se joga a minha alma

Joana Corrêa Monteiro

Esta ideia tem um alcance ainda maior se pensarmos que, para algumas pessoas, o incómodo original em que estão enraizadas todas as inconveniências de segunda ordem é viverem neste tempo.

É certo que ser cristão é operar numa tensão, por vezes difícil, entre viver no mundo e esperar um Reino que não é deste mundo. Como tal, torna-se evidente que viver como cristão exige uma dimensão de contradição, de negação daquilo que são os critérios e as seduções mundanos. Santo Inácio recorda-nos, a este propósito, que a vida pode ser comparada com um grande combate, em que há que escolher sob qual das bandeiras lutar – a de Cristo ou a do Inimigo. Uma certa medida de intransigência é, assim, própria dos cristãos.

Mas esta firmeza no “bom combate” não pode ser confundida com a ilusão de que o problema é o mundo. Sejamos claros – o problema pode ser o mundo. Mas a verdade é que nós não escolhemos este tempo nem este mundo, nós fomos escolhidos para este tempo e para este mundo. O que também quer dizer que este foi o tempo que nos foi dado e este foi o mundo que nos foi confiado. A nossa missão, como cristãos, não é abandoná-lo ou recusá-lo sem mais, mas, naquilo que nos for dado fazer, conduzi-lo a Cristo. Desencravando gavetas, se for o caso.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.