Certezas e dúvidas em tempos de pandemia

A «leitura» do mundo já não era fácil antes da pandemia. A tarefa de analisar o que será o equilíbrio de forças entre as grandes potências ao longo deste século não é de todo um trabalho simples.

The Road Not Taken
«I shall be telling this with a sigh
Somewhere ages and ages hence:
Two roads diverged in a wood, and I –
I took the one less traveled by,
And that has made all the difference »
Poema de Robert Frost, do seu livro Mountain Interval de 1916.

Os efeitos da pandemia são múltiplos e, por vezes, confusos. É um misto da certeza de estarmos perante uma transição e da incerteza de não conseguirmos descortinar os contornos e o conteúdo desta nova fase. Nem dá para usarmos estas últimas linhas do clássico poema de Robert Frost sobre as escolhas e as decisões da nossa vida. A tensão que vivemos hoje em dia afeta o nosso quotidiano, a política, a economia e a sociedade como um todo. E, como calculam, a política internacional não é exceção.

Temos líderes que optaram por minimizar ou ignorar o impacto desta pandemia em regimes ditatoriais e mesmo em democráticos. Assistir ao dia-a-dia da «gestão» desta crise por Brasília ou Washington é um exercício verdadeiramente penoso. Menos surpreendente é a situação vivida na Rússia de Vladimir Putin e na China de Xi Jinping, onde a extensão da pandemia e a realidade dos números das vítimas continuam sob «nevoeiro».

Nos estados-membros da União Europeia encontramos respostas diferentes a nível nacional e, em paralelo, uma articulação crescente dos esforços comunitários para ajudar os países nesta situação de fragilidade imensa. A liderança de Angela Merkel e o esforço conjunto com Emmanuel Macron têm sido importantes para atenuar as divisões e as tensões dentro do grupo de 27 estados. Ainda assim, há um caminho longo a percorrer e parece, pelo menos para já, que a tónica da solidariedade se vai sobrepor à austeridade no auxílio comunitário. A ver vamos.

E, enquanto, estamos concentrados em lidar com a pandemia há tragédias humanitárias que se agravam e conflitos, como é o caso do Iémen, que não param. Dou por mim a pensar muito em todos aqueles que fugindo do horror da guerra civil na Síria ou da perseguição implacável das forças armadas de Myanmar, como é o caso dos Rohingya, se encontram em condições desumanas. Apesar dos esforços humanitários há tanto para fazer para ajudar milhões de pessoas a voltarem a sentir a dignidade que todos os seres humanos merecem e a esperança numa vida melhor.

Apesar dos esforços humanitários há tanto para fazer para ajudar milhões de pessoas a voltarem a sentir a dignidade que todos os seres humanos merecem e a esperança numa vida melhor.

Mas, no meio de tanta incerteza à qual temos de forçosamente acrescentar a eleição presidencial dos EUA em novembro (e a eleição da Câmara dos Representantes e de um terço do Senado), há algumas tendências que têm vindo a ser reforçadas. No que toca ao espaço da União Europeia gostaria de salientar as relações com a China e a diversificação da «Ásia» em matéria de comércio livre. A Comissão Europeia assumiu o gigante chinês como um «rival sistémico» e tem procurado fazer a ponte com outras economias asiáticas tais como o Japão, a Coreia do Sul e a Índia. Há uma vontade evidente de reforçar as relações e parcerias com o chamado Indo-Pacífico.

Nós portugueses vamos assumir, após a Alemanha, o «leme» da Europa no primeiro semestre de 2021. Vão ser meses muito intensos. Para além da questão de fundo de «sobreviver» à pandemia do ponto de vista económico e financeiro, vamos continuar a ter a gestão do «Brexit», a vontade assumida de melhorar as relações com o continente africano, a redefinição da relação com a China, a questão estratégica do 5G, as relações transatlânticas pós-eleições norte-americanas, entre outras.

E, infelizmente, eu diria que vamos continuar a assistir ao reforço das democracias iliberais da Hungria e da Polónia, entre outras, a todo o vapor. Aquilo que está a acontecer na Hungria diz respeito a todos os europeus e a todos os democratas. Sobre a defesa da democracia liberal, da sua liberdade de expressão, da sua liberdade de ensino e de reflexão, não pode haver dúvidas. O confronto não é fácil, mas é crucial.

Está em causa a credibilidade da União Europeia naquilo que é o seu coração: a democracia. Nem mais nem menos. É um caminho de luta que temos que percorrer e, parafraseando o poeta Robert Frost, «isso faz toda a diferença».

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.