Cabeça fria e coração quente

É tempo de relembrar que é fundamental, nesta como noutras situações semelhantes que já vivemos, organizar a solidariedade.

O conflito na Ucrânia, a que temos assistido quase em direto e de forma sistemática, tem-nos trazido o confronto violento com a emergência social, com o alarme e com o sofrimento humano exacerbado.

Às notícias da guerra e das suas consequências para cada vez mais pessoas, foram-se agigantando, quase em paralelo, manifestações de solidariedade e de apelos à paz, bem como iniciativas individuais e coletivas de apoio às pessoas que começaram a sair do seu país.

Desde o final de fevereiro de 2022 que são sucessivas as informações sobre recolhas e consequentes donativos de alimentos, roupas e outros bens, a criação de plataformas de sistematização de ofertas de alojamento temporário, caravanas para ir até ao outro lado da Europa para trazer pessoas para Portugal, páginas e grupos de entreajuda nas redes sociais, entre tantas outras iniciativas que desconhecerei. A disponibilidade para apoiar pessoas em situação de vulnerabilidade, neste caso devido a uma situação de guerra, é marcante e até surpreendente. A rapidez com que tantas iniciativas surgiram continua a ser admirável… mas ao mesmo tempo preocupante.

A esta altura, em abril de 2022, são já muitos os alertas sobre os riscos que iniciativas pontuais e desarticuladas comportam. Desde o tráfico de seres humanos ao acolhimento de pessoas em situações indignas, começam já a circular relatos e informações alarmantes. Ganham força as vozes que apelam para a necessidade de organização da ajuda a quem agora está a passar pela situação dramática de ter de deixar toda a sua vida para trás e fugir para outro país.

Por mais que esta possa parecer uma sugestão pouco pragmática para quem tem o ímpeto de uma ação rápida perante uma situação desta dimensão, é tempo de relembrar que é fundamental, nesta como noutras situações semelhantes que já vivemos, organizar a solidariedade.

Por mais que esta possa parecer uma sugestão pouco pragmática para quem tem o ímpeto de uma ação rápida perante uma situação desta dimensão, é tempo de relembrar que é fundamental, nesta como noutras situações semelhantes que já vivemos, organizar a solidariedade.

Os riscos de uma solidariedade pautada por uma intervenção rápida, mas pouco refletida, desarticulada e sem uma estratégia de médio e longo prazo poderá significar:

  • um imenso desperdício de recursos (teremos certamente memória dos imensos donativos que ficaram a estragar-se em armazéns, aquando de uma outra tragédia que assolou o centro do país há poucos anos),
  • uma ineficiência da ajuda que se pretende prestar, porque muitas vezes a ajuda disponibilizada acaba por não ter o efeito esperado e/ou não chegar onde ou a quem é suposto chegar (sabemos já de diversos autocarros que foram para a Polónia para trazer pessoas para Portugal e que acabaram por regressar quase vazios),
  • e, mais grave do que tudo isto, a falta de acompanhamento e salvaguarda dos direitos das pessoas a quem, nesta situação em concreto, se pretende prestar auxílio.

Não obstante a vontade e disponibilidade para apoiar, é fundamental a articulação e canalização de recursos para entidades e instituições nacionais e internacionais que têm capacidade, nomeadamente logística e técnica, para organizar respostas perante situações de emergência. Sabemos que não raras vezes faltam a estas entidades recursos para avançar rápida e prontamente para o terreno. Sabemos também que, chegando às pessoas, estas entidades terão uma maior capacidade de dar uma resposta mais capaz e um acompanhamento mais consequente a quem está – e é importante sublinhar esta ideia – numa situação de imensa vulnerabilidade.

Neste enquadramento, é fundamental não esquecer o papel do Estado, que, através das suas instituições e em articulação com as autarquias e com a sociedade civil, tem o dever e a responsabilidade maior de zelar pela garantia dos direitos das cidadãs e cidadãos acolhidos em Portugal.

É por isso que a capacidade técnica para o acolhimento, por profissionais com competência e formação para acompanhar pessoas nestas circunstâncias, será absolutamente essencial. Não obstante toda a agilização de procedimentos, mobilização e esforço que tem vindo a ser desenvolvido em Portugal para o acolhimento das pessoas que têm chegado da Ucrânia, pelo que vou acompanhando pelas redes sociais e por outros canais mais próximos, receio que essa dimensão não esteja a ser assegurada como seria desejável, para que efetivamente as pessoas tenham um acolhimento digno.

Estar disponível para ‘ajudar pessoas’ não pode, em nenhum momento, significar que temos qualquer poder sobre elas ou sobre as suas escolhas, mesmo que não concordemos com elas.

A solidariedade não pode, em nenhuma circunstância, justificar a perda de autonomia e autodeterminação das pessoas para tomar decisões sobre a sua própria vida e das suas famílias. Estar disponível para ‘ajudar pessoas’ não pode, em nenhum momento, significar que temos qualquer poder sobre elas ou sobre as suas escolhas, mesmo que não concordemos com elas. É por tudo isto que a mediação e o apoio às famílias, empresas ou outras entidades que estão a receber pessoas, seria fundamental, no presente e no futuro.

Entendo que a solidariedade entre as pessoas, sejam quais forem as circunstâncias, é das mais poderosas forças que temos enquanto seres humanos! Mas isso será tanto mais verdade se formos capazes de construir laços de solidariedade fortes, duradouros e de confiança, que deem opções às pessoas e nunca que as limitem.

Estamos perante uma situação dramática, com uma pressão mediática brutal e a sensação de impotência é enorme. Nesta como noutras situações é muito importante parar para pensar, ter a cabeça fria, sem deixar de ter o coração quente, canalizando a nossa capacidade e ímpeto solidário para ações concertadas e consequentes.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.