A justiça da justiça

Sabemos pouco. Julguemos menos. Porque a justiça da justiça não se faz (não se pode fazer) de manchetes, de literacia incompleta, e em ambiente de preconceito.

Invariavelmente, quando nos toca conhecer mais ao pormenor uma determinada história ou episódio que, depois, vem a ser notícia, experimentamos, ao ouvirmos ou vermos a tal notícia, aquela sensação de incompletude, de falta de rigor, de «não é bem assim». Por vezes essa sensação é mesmo de desconforto, tal é a diferença entre a versão que é propalada face àquela que conhecemos ou testemunhamos.

E se é assim no que diz respeito aos factos que conhecemos, não é muito diferente quando as notícias ou comentários versam sobre áreas do conhecimento que dominamos melhor, porque nelas nos especializamos pelo estudo e pelo trabalho (imagino, por estes tempos, como se terão sentido os médicos, em particular os oriundos das especialidades que tiveram de bulir com a Covid e os seus efeitos).

Não teremos todos a mesma sensibilidade e, portanto, nem todos se indispõem perante as incorreções (quando não banalidades) difundidas como verdades absolutas e plenas de autoridade. E eu, sem falsas modéstias, não serei daqueles especialmente habilitados a essas reações – não me tomo por «especialista» de coisa nenhuma nem participo habitualmente dos factos, das pessoas e dos eventos que merecem destaque noticioso.

Há um domínio, contudo, que progressivamente vem irrompendo em manchetes, comentários e especialistas e que, depois, alastra por essas redes desenfreadas (ditas sociais) até quase dominar os nossos próprios ambientes sociais e familiares. A progressão, não sendo nova, é por estes dias especialmente efervescente.

Surpreendentemente, o vocabulário corrente em qualquer telejornal integra com naturalidade essas e outras expressões de «juridiquês».

A que me refiro? Aos temas de justiça. Por via de regra sustentados pelos mega-processos, por arguidos famosos e poderosos, e (pormenor sempre sedutor) por muitos milhões envolvidos. Há pouco mais de 20 anos seria estranha a alusão à «fase de instrução», às «medidas de coação», ao «termo de identidade e residência», às «medidas cautelares», ao «juiz de instrução», aos «órgãos de investigação criminal», até ao «trânsito em julgado» e por aí fora. Surpreendentemente, o vocabulário corrente em qualquer telejornal integra com naturalidade essas e outras expressões de «juridiquês».

Não quero, obviamente, desdenhar destas manifestações de uma justiça que está em curso e a funcionar e que, portanto, merece destaque noticioso. E também não quero desmerecer a democratização da literacia em matérias de direito, do processo e da organização judiciária. Mas, entre o entusiasmo e a angústia, tenho sido mais dominado por esta última.

Que não sobrem dúvidas. Eu, como todos, anseio e rejubilo com uma justiça a funcionar. Mas já não tenho esse júbilo com uma mera justiça de manchete (manchete em sentido assumidamente pejorativo). Porque a justiça não é nem se esgota na notícia de uma mera constituição de arguido, de detenções para interrogatório, de inquéritos, de instruções, de despachos de pronúncia e, mesmo, de dois juízes de instrução em alternância (tenham eles as diferenças e as tendências que tiverem). E não se faz, certamente, pelos juízos que essas notícias precipitam e chancelam.

Porque a justiça não é nem se esgota na notícia de uma mera constituição de arguido, de detenções para interrogatório, de inquéritos, de instruções, de despachos de pronúncia e, mesmo, de dois juízes de instrução em alternância (tenham eles as diferenças e as tendências que tiverem).

Por estes dias, vivo mais preocupado que confirmado.

Vem-me frequentemente à memória o velho médico, psiquiatra e criminologista Lombroso (nota 1) que me foi «apresentado» no 3.º ano da faculdade, e que, entre outras referências, salientava as características físicas do criminoso («orelhas de abano, cabelos abundantes, barba escassa, sinos frontais e maxilares enormes, queixo quadrado e saliente»). Talvez pareça caricatural e até se possa dizer que semelhantes ideias foram, entretanto, afastadas (até militarmente). Mas não estou certo de que se tenham afastado os instintos onde elas medraram. Porque a natureza é a mesma. E, às tantas, é tudo uma questão de ambiente.

O exercício mais genuíno que me imponho quando projeto a justiça por que anseio passa sempre por me colocar no lugar do suspeito, do arguido, do detido para interrogatório, do noticiado em manchete, do pronunciado por um juiz de instrução, do sujeito a medidas de coação. E, claro, convictamente inocente ou, pelo menos, certo das minhas circunstâncias que «justificarão» a não condenação. Penso, no fundo, no ambiente que gostaria que vigorasse. Ou, se quiserem, no nível de literacia que gostaria de ver promovido para que a minha inocência fosse presumida e respeitada.

Ora, ao lado daqueles chavões (do arguido acusado e pronunciado), seria interessante que conhecêssemos o curso de um processo (entre a fase de inquérito e a de julgamento), a separação de poderes, a separação entre a investigação e o julgamento (e o investigador e o julgador), o duplo grau de jurisdição, o trânsito em julgado, as regras processuais e o quanto nos salvaguardam do abuso de poder e da arbitrariedade, as provas e a lealdade na obtenção das provas. Até a proporcionalidade como condição para a chegada à verdade. E também as causas de exclusão da ilicitude e da culpa. E nem me refiro ao sistema prisional, que qualquer julgador devia conhecer profundamente antes de o ser (poucos farão ideia de como cumprir uma pena de prisão em grande parte dos nossos estabelecimentos prisionais corresponde a duas penas – à de privação da liberdade, e ao sobressalto pela integridade e dignidade física).

Comecei por dizer que quando nos toca conhecer mais ao pormenor uma determinada história que é notícia, ou quando as notícias versam sobre áreas do conhecimento que dominamos melhor, experimentamos aquela sensação de incompletude, de falta de rigor, do tal «não é bem assim». Agora pensemos que a reboque dessa falta de rigor, dessa incompletude, resulta a nossa «condenação». Não seria a primeira vez. Não seríamos os primeiros.

Sabemos pouco. Julguemos menos. Porque a justiça da justiça não se faz (não se pode fazer) de manchetes, de literacia incompleta, e em ambiente de preconceito.

 

Notas:

1. Cesare Lombroso, (Verona, 6 de novembro de 1835 — Turim, 19 de outubro de 1909).

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.