A importância de um beijo e a essencialidade de um gesto

Somos verdadeiros “beijoqueiros”, como diz a graça corriqueira. Como utilizar a afetividade, quando parece que estamos proibidos de a exercer?

Variadas vezes falamos sobre a importância de um sorriso.

“Um sorriso pode mudar uma vida” – e pode mesmo, quando franco e dado no momento certo, àquela pessoa que tudo e o que mais precisava era de um momento de relação, de reconhecimento do seu ser, atendendo à necessidade humana mais básica de todas – a de se ser amado.

Falamos também de abraços, de como um abraço cura. De como os corações podem adequar o passo ao ritmo um do outro, quando o abraço é dado, coração com coração.

De como os abraços envolvem a totalidade do nosso ser, entregue a um outro, proporcionando um encontro, um envolvimento total de duas maneiras de ser que, palavras, crenças, ideologias, filosofias à parte, se decidem encontrar no meio, criando uma ponte, onde naturalmente, perante diferenças aparentemente intransponíveis, só veríamos barreiras ou até fronteiras.

Falamos ainda, como bons latinos que somos, membros do sul quente e caloroso da Europa, de beijos. Somos verdadeiros “beijoqueiros”, como diz a graça corriqueira. Enviamos beijos a todos, conhecidos ou não, quer a nossa intenção seja concretizar o beijo ou usá-lo apenas como meio de despedida. De qualquer uma das formas, usamo-los recorrentemente. O beijo ao acordar, ao despedirmo-nos para irmos para o trabalho ou para os outros afazeres do dia, o beijo do reencontro, o beijo de boa-noite, para além de todos os outros beijos naturais de quem procura a afetividade.

Perante algo que podemos considerar uma natureza e uma necessidade – a de nos relacionarmos afetivamente por gestos e não somente por palavras – o que fazer quando somos desaconselhados ou até interditos de concretizar esses mesmos gestos: os sorrisos, escondidos atrás de máscaras; os abraços, substituídos por cotoveladas ou toques “cool” de pés; os beijos, afrontados pela sua inadequação face às circunstâncias em que nos encontramos;  a própria presença física, quando permitida e sensata, contudo impedida pelo império reinante do medo?

Precisamos ainda, de voltar a repensar na essência dos gestos – serão estes meramente demonstrações físicas ou contará a intenção de cada gesto, de cada traço de uma expressão facial, de cada palavra proferida com mais ou menos delicadeza, de cada olhar sincero e amável, para a essência de um gesto?

Como utilizar a afetividade quando parece que estamos proibidos de a exercer?

Diria que, mais do que nunca, precisamos de ser criativos e mais ainda, carinhosamente criativos. Precisamos ainda, de voltar a repensar na essência dos gestos – serão estes meramente demonstrações físicas ou contará a intenção de cada gesto, de cada traço de uma expressão facial, de cada palavra proferida com mais ou menos delicadeza, de cada olhar sincero e amável, para a essência de um gesto?

Penso que, nos dia que correm, há uma grande urgência que se nos apresenta.

Uma urgência, uma sede, um deficit… não de vitaminas ou de férias (mas dessas também e sempre), mas sim de afetos, de carinhos, de mimos, de cuidados – não tanto com o vírus! Esse é mais do que afeto aos cuidados de todos e tantos – de uma sensibilidade demonstrada em cada olhar, cada pedaço de bochecha que sobe sorrateiramente na máscara, denotando um sorriso rasgado, de cada gesto delicado e gracioso, de cada palavra dita de forma a possibilitar o encontro e de cada silêncio respeitado pelo espaço que lhe damos.

Por vezes, ficamos pela ponta do iceberg, e não entendemos bem que a afetividade que tanto desejamos não está somente nos beijos, abraços ou até sorrisos, mas em cada pedaço da nossa existência que pode ser tão delicada e cuidada, na maneira como se relaciona e cuida do outro, que mesmo num tempo em que parece reinar o medo, deixamos que o império seja o da paz.

A verdade é que somos co-autores dos ambientes em que vivemos. Quem queremos que governe? O medo do cuidado extremo e constantemente alerta, perante a possibilidade da ameaça, ou a paz perante uma convivência que respeitadora e lúcida procura cuidar de cada pessoa que passa pelo nosso caminho e de quem permanece, tornando-se lugar de acolhimento de um outro, que tanto precisa de descanso depois das lutas exigentes do dia-a-dia?

Diria que a importância de um beijo é inquestionável e, mais do que nunca, muito desejada, mas a essencialidade da delicadeza de um gesto, quando dotado das suas propriedades reparadoras da paz e da harmonia, pode ser tudo e ainda mais, pode ser transformador.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.