A alternativa nómada

“Se precisamos de movimento ao nascer, porque é que mais tarde nos fixamos?” Questão curiosa que, enquanto comunidade, precisamos de colocar. Ainda assim, “faz votos para que seja longo o caminho”, “não apresses em nada a tua viagem”.

Ninguém se pode tornar profeta sem antes ser pastor”. Foi Bruce Chatwin que, em Anatomia da Errância, atribuiu esta frase a Maomé. Muitos anos depois, Fernando Pessoa descreveria uma experiência paralela no Livro do Desassossego, dizendo: “Todos me tinham por parentes: nenhum sabia que me haviam trocado à nascença”.

São as muralhas que edificam as cidades; que as tornam visíveis ou impenetráveis ao longe. Eneias, por exemplo, é apresentando como náufrago diante das muralhas de Cartago. Shakespeare, do mesmo modo, coloca o começo de Hamlet, não no centro de Elsinore, mas perante os seus muros vigiados. Beckett, no entanto, ao iniciar À Espera de Godot, oferece-nos um descampado, “uma estrada no campo”, “uma árvore”, um “anoitecer”, como paisagem.

De facto, não me parece ocasional esta migração de geografias: de Cartago ou Elsinore, nos séculos I a.C. e XVII d.C., até esse lugar anónimo e não localizável, como ponto de fuga de uma das mais importantes obras dramáticas do séc. XX, e, talvez, aquilo que vemos nos faça deslocar e decompor o olhar até ao surgimento de um modo ou estilo original de pensar e relacionar o cristianismo, antes de mais, consigo mesmo, a partir da possibilidade da alternativa nómada.

Mas, em primeiro lugar, seria importante não resistir à tempestade; em vez disso, deixarmo-nos conduzir e guiar por ela, pois à força de tantos impedimentos, batalhas e combates, acabamos, tantas vezes, por partir o leme, e ver o barco desfeito no meio das ondas.

Mas, em primeiro lugar, seria importante não resistir à tempestade; em vez disso, deixarmo-nos conduzir e guiar por ela, pois à força de tantos impedimentos, batalhas e combates, acabamos, tantas vezes, por partir o leme, e ver o barco desfeito no meio das ondas.

Receber o mundo
A sabedoria de Dante, que Osip Mandelstam mostrou ser o facto do poeta italiano escrever sob ditado, consiste, igualmente, em este ser capaz de esclarecer que a vida impaciente, essa vida que anseia pela luz e que urge ser redimida, só o é enquanto locomoção permanente, ou então, que o amor por alguém é o movimento bilateral de convertê-lo e converter-se a si mesmo em criança.

Ora, é precisamente esta deslocação dupla que pode abrir caminho à alternativa que apelidamos como nómada. As culturas sedentárias tendem a procurar domesticar ou aperfeiçoar o mundo, num sentido preponderantemente unívoco, construindo processos de instalação e colonização territorial. Por seu turno, as culturas de tendência nómada focam-se em receber o mundo, nunca em mudá-lo. Ou seja, procuram torná-lo mais aquilo que ele é, tornando-se mais aquilo que são. A bênção da dispersão, como comentava Paul Ricoeur a propósito do episódio bíblico de Babel tentando desmistificar uma suposta maldição ou castigo, contrapõe-se, por isso, à cultura de zigurate, tendencialmente totalitária, onde o desejo tutelar é que todos falem a mesma língua.

Seguir o rasto
O nómada é um faminto, obrigado a decifrar e a seguir rastos, pegadas e pistas de animais que não se encontram previamente cartografadas. Não é, por natureza, um leitor de mapas. Por isso, o seu conhecimento é, singularmente, afetivo. Quando Hugo de S. Vítor referia que só a fé é capaz de recriar totalmente o olhar, não era certamente estranha esta possibilidade de re-sintonizar e re-sentir o modo de ver a partir do afeto. Daí que o nómada viva “à flor da pele” ou “à flor do coração”, se preferirmos.

“Dispõe-te a permanecer na escuridão o mais que puderes, clamando por aquele que amas”, escreveu um anónimo, possivelmente monge inglês, do séc. XIV, no livro sobre contemplação “A nuvem do não saber”. E, num certo sentido, seguir o rasto é permanecer nesse mesmo lugar indeciso e incerto. É evidente o risco contínuo de se perder a casa de partida, mas aprendemos com Hansel e Gretel a tragédia de sermos nós mesmos os construtores dos vestígios, mergulhados nas saudades dos lugares de começo. Daí que, quando Sophia explicou que os portugueses “navegavam sem o mapa que faziam”, reconfigurou a disposição de Pedro nos Atos dos Apóstolos ao dizer: “Não tenho prata nem ouro; mas o que tenho isso te dou. Em nome de Jesus Cristo, o Nazareno, levanta-te e anda”.

Chatwin sentenciou que “o luxo impede a mobilidade”, e partira daí para explicar como os chefes nómadas estavam pouco dispostos a conceder espaço a abusos e excessos. Estes ameaçavam e colocavam em risco, de forma vertiginosa, o dia-a-dia. Viver sobre ameaça não permitia tal consentimento. Por esse motivo, purificar era sinónimo de desabrigar e a atenção estava voltada não tanto para a conservação, mas para aquilo que afetava a mobilidade.

Chatwin sentenciou que “o luxo impede a mobilidade”, e partira daí para explicar como os chefes nómadas estavam pouco dispostos a conceder espaço a abusos e excessos. Estes ameaçavam e colocavam em risco, de forma vertiginosa, o dia-a-dia.

A errância não é dispersão 
“A monotonia do ambiente e as atividades regulares e fastiosas urdiam configurações que produziam fadiga, desordens nervosas, apatia, ausência de amor-próprio e reações violentas. Não admira, pois, que uma geração protegida do frio pelo aquecimento central, do calor pelo ar condicionado, transportada em veículos asséticos de um casa ou de um hotel para outros similares, sinta a necessidade de viagens do corpo e do espírito (…) passamos um tempo exagerado e imenso em quartos com persianas (…) privados do perigo, inventamos inimigos artificiais, doenças psicossomáticas, cobradores de impostos e, pior do que tudo, somos nós próprios, se ficarmos sós no quarto”.

Talvez este seja um excerto demasiado longo, mas Bruce Chatwin ajuda-nos a perceber, mais uma vez, o erro que pode ser, diante deste diagnóstico, propor novos “quartos com persianas”, usando como desculpa o facto de estes serem possivelmente mais limpos e arejados que os anteriores, ou anunciando que um nómada é, por natureza, um proscrito, um excluído, alguém que vagueia sem destino, de lugar em lugar. Em realidade, ele segue, em grande medida, padrões migratórios, mas com eles ousa propor novos laboratórios. A errância é, antes de tudo, refinação interior.

“Se precisamos de movimento ao nascer, porque é que mais tarde nos fixamos?” Questão curiosa que, enquanto comunidade, precisamos de colocar. Ainda assim, “faz votos para que seja longo o caminho”, “não apresses em nada a tua viagem”, como aconselhou, acertadamente, o poeta grego Konstandinos Kavafis, pois aquilo que podemos estar a viver não é tanto uma transição para o neolítico religioso, mas o regresso a uma cultura de matriz paleolítica.

Fotografia de: Jorge Luis Ojeda Flota – Unsplash

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.