Santo Nome de Deus

Cohen, Gregório de Nazianzo, Alexandre Men e quatro letras misteriosas. Prepare-se para entrar no mistério.

Cohen, Gregório de Nazianzo, Alexandre Men e quatro letras misteriosas. Prepare-se para entrar no mistério.

1. Como mel para a boca

 

 

A primeira letra do tetragrama YHWH (não se preocupe, vem tudo explicado mais adiante!) pronuncia-se /ya/. Por seu lado, a palavra Aleluia (“hallelujah” em inglês) significa literalmente “Louvai Ya” ou, dito de outra forma: “Louvai Yahvé”. Assim, terá mais atenção da próxima vez que pronunciar esta palavra ou ouvir o conhecido tema de Leonard Cohen.

 

2. O texto bíblico 

Moisés disse a Deus: «Eis que eu vou ter com os filhos de Israel e lhes digo: ‘O Deus dos vossos pais enviou-me a vós’. Eles dir-me-ão: ‘Qual é o nome dele?’ Que lhes direi eu?» Deus disse a Moisés:
«EU SOU AQUELE QUE SOU» Ele disse: «Assim dirás aos filhos de Israel: ‘Eu sou’ enviou-me a vós!»
Deus disse ainda a Moisés: «Assim dirás aos filhos de Israel: ‘O SENHOR, Deus dos vossos pais, Deus de Abraão, Deus de Isaac e Deus de Jacob, enviou-me a vós: este é o meu nome para sempre, o meu memorial de geração em geração’.
Vai, reúne os anciãos de Israel e diz-lhes: ‘O SENHOR, Deus dos vossos pais, Deus de Abraão, de Isaac e de Jacob, apareceu-me.

 

3. O esclarecimento

Se lhe perguntarmos qual é o nome de Deus na Bíblia, decerto responderá simplesmente: Deus. Mas não é bem assim. Nas traduções da Bíblia, o nome comum “deus”* tornou-se um nome próprio, “Deus”, o que não acontece na Bíblia hebraica.

*Este nome comum “deus” vem do latim deus. Deus, tal como o grego Zeus, parece querer dizer originalmente “luz”, “dia”.

Assim, impõe-se a questão :

Qual é o nome de Deus na Bíblia em hebreu?

Existem vários, mas apresentamos-lhe pelo menos três:

O primeiro nome divino que descobrimos é El Shaddaï (para aprofundar este nome divino, releia  o episódio “Os seios de Deus ou em busca de um Deus escondido”)

O Antigo Testamento refere também élohim, um nome comum, que se traduz na maioria das vezes por “Deus”.

Mas o nome próprio que surge mais vezes aparece escrito em quatro letras (um tetragrama, se quisermos ser mais requintados): YHWH.

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As quatro consoantes YHWH encontram-se inscritas em monumentos do mundo inteiro. Em Paris, encontramo-las mais de cinquanta vezes em vinte locais diferentes, como na torre norte da Igreja Saint-Suplice.

Conhecer o nome divino…

A noção de nome divino que atravessa toda a alta antiguidade no Oriente é a mesma: quem conhece o nome do seu deus pode dirigir-se a ele, torná-lo presente e beneficiar do seu poder. Por esta razão, a revelação do nome divino é uma graça recebida.

Ora, quando Moisés se aproxima da sarça ardente e pergunta a Deus qual o seu nome, a reposta que recebe deixa-o estupefacto: “Sou aquele que sou”. E, depois, revela-lhe o seu nome: “YHWH”.

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Representação do século III d.C: Moisés et a sarça ardente, fresco, painel 1, lateral vertical da parede oeste, Sinagoga de Doura Europos, ©Wikicommons

Uma das interpretações judaicas é a de que o próprio Deus nunca diz o seu nome, inefável, e revela-se ocultando-se. Esta “revelação escondida” encerra uma ironia profundamente pedagógica: e isto porque o “Nome” é, simultaneamente (atenção vêm aí dois termos muito complexos, mas com muito estilo!), catafático e apofático:

  • por um lado Deus aceita revelar-Se, dizendo o nome => catafático
  • por outro, recusa-se a revelar a Sua identidade profunda (ocultando-se por trás de um enigmático “Sou aquele que sou”) => apofático

 

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A sarça ardente, (mosaico, 538-545), Basílica de São Vital, Ravena ©D.R

 

Mesmo quando Deus aceita dizer o seu nome, a tradição rabínica assegura que este nome não pode ser pronunciado fora do Templo. E é por isso que se continua a escrever quatro letras, sem as vocalizar: YHWH.

Ainda assim, para o poder pronunciar, temos de arranjar de vocalizar o tetragrama: Yahweh ou Yahvé são as formas mais correntemente aceites.
Uma outra vocalização é “Jéhovah”. Esta vocalização, mais problemática hoje em dia, foi popularizada pelas traduções inglesas de William Tyndale, da versão de “King James” ou da Bíblia de Genebra.

 

4. Uma palavra quase final

Não poderíamos deixar de fazer referência ao majestoso Pai da Igreja, Gregório de Nazianzo, que viveu no século IV, na Capadócia (atual Turquia):

“Tu, que estás para além de tudo,

Como posso chamar-Te por outro nome?

Que hino posso cantar-Te?

Nenhuma palavra Te exprime.

Quem pode apreender-Te?

Nenhuma inteligência te concebe.

Tu és o Inefável;

tudo o que dizemos vem de ti.

Tu és o grande Desconhecido:

tudo o que pensamos vem de ti.

[…]

O desejo universal,

todas as nossas lamentações

vão em direção a Ti.

[…]

Não és um só, não és o todo:

Tu tens todos os nomes,

como devo chamar-Te?

Tu, o único que não podemos nomear

que espírito celeste poderá penetrar nas densas nuvens

que ocultam o céu?

Tem piedade, ó Tu que estás para além de tudo;

como chamar-Te por outro nome?

“Poemas dogmáticos”, recolhidos em Quand les hommes parlent aux Dieux, Ed. Bayard, 2003.

 

5. Nota de rodapé: para ir mais longe… 

Esta semana, em jeito de nota de rodapé, propomos-lhe ir um pouco mais longe com um vídeo com um ligeiro toque surrealista.

Num domingo de 1988, a televisão soviética convidou o P. Alexandre Men – padre ortodoxo e teólogo russo, co-fundador da Sociedade Bíblica Russa e assassinado em 1990 – para falar sobre “questões eternas”.

Foi-lhe feita apenas uma ressalva: teria de o fazer sem nunca pronunciar o nome de Deus, nem outra palavra judaico-cristã. Todas as suas afirmações teriam que ocultar tal referência. O seu discurso retrata uma parte da antologia da cultura contemporânea e dirige-se a todos os homens.

 

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.


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