Manifesto da minha deficiência

Nas vésperas do Dia Internacional das Pessoas com Deficiência, a assinalar na terça-feira, dia 3, quatro mães de filhos com deficiência escrevem manifesto contra o medo e para chamar a atenção para a indiferença que sofrem estas pessoas.

Nas vésperas do Dia Internacional das Pessoas com Deficiência, a assinalar na terça-feira, dia 3, quatro mães de filhos com deficiência escrevem manifesto contra o medo e para chamar a atenção para a indiferença que sofrem estas pessoas.

O Dia Internacional das Pessoas com Deficiência (3 de dezembro ) é uma data comemorativa internacional promovida pelas Nações Unidas desde 1992, com o objetivo de promover uma maior compreensão dos assuntos relacionados com a deficiência e para mobilizar a defesa da dignidade, dos direitos e o bem estar das pessoas. Procura também aumentar a consciência dos benefícios trazidos pelas pessoas com deficiência em cada aspeto da vida política, social, económica e cultural. No seu centro está a defesa da dignidade das pessoas com deficiência para o desenvolvimento de um mundo mais inclusivo e equitativo.

Há 10 anos que Portugal ratificou a Convenção dos Direitos Humanos das pessoas com deficiência e, se devemos celebrar uma década de caminho positivo na visão e realidade das pessoas com deficiência, a verdade é que continuamos a testemunhar desigualdade de oportunidades, falta de participação e até invisibilidade em quase todas as esferas da sociedade. De alguma maneira, a grande exclusão não passa pela ausência de leis, regulamentação ou orientações, mas antes pela solidão que atinge este assunto que parece reservado apenas para quem vive com uma deficiência, seja ela do próprio ou alguém próximo. Acontece que, curiosamente, quase todos nós estamos próximos da deficiência mas talvez estejamos enclausurados no nosso próprio conceito relacionado com a deficiência e naturalmente nos afastamos por medo ou distância. E é neste medo ou distância que reside o maior problema de direitos humanos. Sim, o maior problema da Convenção de Direitos Humanos das pessoas com deficiência não é o seu conteúdo normativo mas antes o seu não conteúdo social. O problema é que eles existem mas não são efetivos. Eles existem mas sobretudo, não são afetivos.

A grande exclusão não passa pela ausência de leis, regulamentação ou orientações, mas antes pela solidão que atinge este assunto que parece reservado apenas para quem vive com uma deficiência, seja ela do próprio ou alguém próximo.

Falar de afetividade e deficiência parece um tema esquecido ou mais um reservado aos “outros” que não sou “eu” e lá vamos nós para a grande questão da dificuldade de construirmos narrativas baseadas no “nós, pessoas”. O grande problema central para a necessidade de continuar a existir um Dia Internacional das Pessoas com Deficiência é que, para a consciência da dignidade, para a efetividade e afetividade precisamos de entender o que é a deficiência e porque achamos que nos diminui na possibilidade de sermos cidadãos na plenitude de direitos e obrigações como tais.

Sabemos que é-nos mais fácil a compreensão das alegrias e dos sofrimentos dos outros se estes nos forem mais próximos. As distâncias acompanham frequentemente as distâncias do coração e muitas vezes evitamos a interação com aqueles que consideramos diferentes, acabando por vê-los à luz de lentes desfocadas e de estereótipos.

Acresce que, em relação à deficiência, as representações sociais reduzem as pessoas às suas características deficitárias e deste modo são vistas como um perigo, um peso ou um mal. Associamos a deficiência ao sofrimento e reduzimo-la a ele. Deste modo temos dificuldade em ver a pessoa por trás das barreiras que erguemos em torno dela. Ela torna-se invisível porque desviamos o olhar.

Mesmo quando a deficiência é acentuada e traz consigo problemas de comunicação verbal, ela continua a ser uma pessoa. Se não assistimos a discursos e ações de ódio, assistimos a uma indiferença que se revela como uma violência, que se concretizam em violações aos direitos humanos consagrados. Tantas vezes, sem consciência ou silenciosos. É esta a invisibilidade que referimos.

Lamentavelmente, ao encontrarmo-nos distantes uns dos outros, ainda que não subscrevamos ou não tenhamos completa consciência da invisibilidade violenta, com frequência acabamos por nos deixar no “sofá” e cair na indiferença silenciosa que apenas agudiza as situações.

É aqui que “o que é a deficiência” se torna fundamental, pois é necessário um compromisso resiliente por parte de todos com a proteção da dignidade. Não basta fortalecer as estruturas jurídicas institucionais, nem chega a ação da Organização das Nações Unidas e de tantas Organizações da Sociedade Civil que se empenham pela defesa e promoção dos direitos fundamentais. No final, para que se possa construir com eficácia uma sociedade global onde a dignidade das pessoas com deficiência seja respeitada, é preciso que essa mesma sociedade, constituída por cada um de nós, cultive a atitude empática que faz alargar a lógica e o pensamento racional, que compreenda com o coração que tem poder para transformar o seu pequeno contexto e que o impacto dessa pequena transformação na rede global é decisivo para que as relações se reconfigurem positivamente e para que o mundo se torne num lugar de tolerância (mas de intolerância face à violência e discriminação).

Nasceu assim um manifesto, não sobre as pessoas com deficiência, mas antes um manifesto da nossa deficiência, que não diminui, é universal e parte da nossa condição humana. A nossa deficiência que precisamos de reconhecer e oferecer.

Neste dia, gostaríamos de contrariar o medo, chamar a atenção para a indiferença, convidando cada um a mover-se pelo impulso humano de nos colocarmos nos “lugares uns dos outros”. Nasceu assim um manifesto, não sobre as pessoas com deficiência, mas antes um manifesto da nossa deficiência, que não diminui, é universal e parte da nossa condição humana. A nossa deficiência que precisamos de reconhecer e oferecer:

 

A minha deficiência.

A minha deficiência não me diminui.

Eu não sou diminuída em nada pela deficiência que carrego, nem por qualquer incapacidade que possa ter. A condição da minha deficiência não afeta os deveres e direitos que tenho, e que são universais.

Não afeta a minha humanidade, não afeta a minha dignidade, não afeta todas as minhas capacidades e não afeta as minhas necessidades. Não me diminui, caracteriza-me tal como a minha altura e a minha aparência o fazem.

A minha deficiência, atual ou futura, vai estar presente nas escolhas que fizer. Tal como as tarefas que desempenho com tanta facilidade ou as qualidades naturais que tenho.

O que é que me diminui?

A maneira como as pessoas olham para mim e me limitam. O preconceito em relação às minhas capacidades como se, por não conseguir fazer uma tarefa, esteja condenada a fazer nenhuma. O julgamento, a pena.

Por isso preciso de me aceitar, para poder também defender esta causa em que acredito: a minha deficiência não me diminui. Se eu não aceito que tenho uma deficiência não me consigo valer das minhas (outras e tantas) capacidades e às vezes até permito ser generalizada de pessoa com deficiência até uma pessoa deficiente – será que existem pessoas d(não)eficientes?

O que me faz dar o melhor de mim?

Um sorriso, uma ato de confiança mesmo que eu venha a falhar. A certeza de que a próxima vez que tentar vou fazer diferente e, quem sabe, melhor.

A minha deficiência.

A minha deficiência não me diminui.

A minha deficiência sou eu, és tu, somos nós.

Este é o nosso manifesto que se desdobra no princípio de que, enquanto não conseguirmos assumir (enquanto sociedade e enquanto cidadãos) quem somos, nas nossas limitações e capacidades, continuaremos a colocar a deficiência à margem. Na convicção de que as margens só se tocam quando construirmos passagens seguras e admitirmos que somos muito mais do que diferenças, que somos muito mais do que iguais, que somos humanos.

Um Feliz Dia Internacional das Pessoas Com Deficiência para Todos

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.