A Amiga genial

Não conseguindo ter a mesma profundidade que os livros, a verdade é que a série consegue manter o espírito da obra original e o essencial da narrativa. Prova disso é que as pessoas que adoraram os livros, como eu, estão a gostar da série.

Não conseguindo ter a mesma profundidade que os livros, a verdade é que a série consegue manter o espírito da obra original e o essencial da narrativa. Prova disso é que as pessoas que adoraram os livros, como eu, estão a gostar da série.

Comecei a ver a série A Amiga Genial, na HBO, um pouco a medo, confesso. Porque tinha adorado os livros. Tinha-os devorado, é o termo mais indicado. Li-os, um a seguir ao outro, quase sem intervalos, fascinada com a história das duas amigas, Elena Greco (conhecida como Lenù) e Rafaella Cerullo (a destemida Lila).

O primeiro volume da chamada “tetralogia de Nápoles”, de Elena Ferrante foi publicado em 2011 mas percebe-se que na cabeça da autora já estariam os outros volumes que se seguiram: História do Novo Nome (2012), História de Quem Vai e de Quem Fica (2013), História da Menina Perdida (2014). Sobre a autora sabemos muito pouco. Elena Ferrante é o pseudónimo de uma escritora que, desde o início, mantém o anonimato e só dá entrevistas por escrito, embora nos últimos anos, e cada vez mais, publique crónicas e ensaios sobre o seu processo de escrita e as suas opiniões sobre o mundo. Portanto, talvez o mais correto seja dizer que sabemos pouco sobre a sua biografia mas, na verdade, se estivermos atentos, poderemos saber muito sobre a autora. De qualquer forma, isso acaba por ser pouco relevante.

Na série, tal como nos livros, fazemos uma viagem pela história de Itália do pós-Segunda Guerra Mundial à atualidade, pelas mãos das duas personagens principais: Lenù, tendencialmente bem-comportada, estudiosa, sensata; e Lila, irreverente e impulsiva. Encontramo-las ainda crianças a brincar no seu bairro, nos subúrbios de Nápoles, numa grande pobreza. O país está a reconstruir-se, as miúdas estão a descobrir-se. Passam o tempo a ler o romance Mulherzinhas, de Louisa May Alcott, e a imaginarem como será a sua vida quando crescerem. E já aí percebemos como a sua amizade é complicada.

Na série, tal como nos livros, fazemos uma viagem pela história de Itália do pós-Segunda Guerra Mundial à atualidade, pelas mãos das duas personagens principais: Lenù, tendencialmente bem-comportada, estudiosa, sensata; e Lila, irreverente e impulsiva.

Encontramo-las depois com 17 anos. Lenù no liceu, Lila a casar. Cada uma, à sua maneira, tem de aprender a lidar com o desejo – o seu e o dos homens que as rodeiam. Ambas têm de tomar decisões importantes em relação ao seu futuro: o que querem realmente? Casar, ter filhos e ficar no bairro, repetindo o modelo dos seus pais? Ou tentar fazer algo diferente e sair dali, alargar os seus horizontes?

Depois dos tons cinzentos da primeira temporada, a segunda temporada traz-nos, gradualmente, o colorido dos anos 60. Um dos aspetos mais maravilhosos dos livros de Ferrante é o modo como ela nos leva a mergulhar, primeiro, naquele bairro, depois da cidade de Nápoles, e, por fim, em Itália, levando-nos ao mesmo tempo numa viagem que começa na década de 1940 e nos traz até quase aos nossos dias. E a série tenta também fazer esse retrato, de um tempo e de um espaço. É por isso que os pormenores são tão importantes: os prédios, as casas, as roupas, os penteados, o dialeto, os muitos figurantes que dão vida àqueles cenários. Nada foi deixado ao acaso.

As convulsões sociais e políticas – as lutas estudantis e o idealismo dos anos 60, as lutas dos trabalhadores e o terrorismo dos anos 70 – são o pano de fundo para a história das duas amigas e para o modo como elas próprias vão crescendo e evoluindo, alterando a sua maneira de pensar, os seus objetivos, os seus sonhos. A história de Lila e de Lenù é a história de duas mulheres que cresceram na segunda metade do século XX, divididas entre um modelo tradicional de família e as aspirações feministas. Poderá alguma delas suportar um casamento sem amor? Deverá uma mulher submeter-se às vontades do seu marido? Como escolher entre a família e a carreira? Esse questionamento continua na terceira temporada. Afinal, a vida adulta pode não ser exatamente como elas a sonharam.

Adoptando um estilo de interpretação que contrasta muito com todo o naturalismo na reconstituição histórica, as atrizes Margherita Mazzucco (Lenù) e Gaia Girace (Lila) acabam por, à medida que a série avança, conseguir apropriar-se das personagens criadas por Ferrante. Talvez não fosse assim que as imaginássemos ao início mas, falo por mim, hoje em dia não lhes conseguiria dar outro rosto, e até já estou um bocadinho mais apaziguada com aquela quase-apatia de Lenù, a quem apetece tantas vezes dar um abanão.

A série estreou em 2018. Neste momento aguardamos a quarta e última temporada. E, não conseguindo ter a mesma profundidade do que os livros, a verdade é que consegue manter o espírito da obra original e o essencial da narrativa. Prova disso é que quase todas as pessoas que adoraram os livros, como eu, também estão a gostar da versão televisiva. E mesmo sabendo o que vai acontecer a seguir, isso não nos tira o prazer de ver – e de nos perguntarmos, até ao fim, qual delas é, afinal, A Amiga Genial.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.